Vamos as compras

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 O sol tentava atravessar as nuvens sem sucesso, o cheiro de óleo de motor e vísceras em decomposição enchia o ar. Gabriel segurava firme o cabo do machado de incêndio levantando-o alto antes de rachar outro crânio, que estourava em uma nuvem de sangue coagulado e massa encefálica podre antes de estremecer e cair encima do capô de um sedã estacionado. Eles estavam a uma rua do supermercado, a uma rua dos mantimentos que não os deixariam morrerem de fome ou os faria partir para o canibalismo que havia se tornado comum entre alguns grupos mais afastados do centro.

A Avenida Frei Serafim logo surgiu silenciosa, a antiga via principal da cidade estava abandonada com uma dúzia de vagantes perambulando sem rumo ao redor de carcaças de carros e ônibus do transporte municipal, o grupo liderado por Gabriel correu e se esgueirando por entre os carros, pilhas de lixo se acumulavam por todos os lugares, o vento voltou a soprar trazendo novamente cheiro podre.

- Eu realmente não consigo me acostumar com esse cheiro - falou Bia ao pé do ouvido de Gabriel, a menina franzina do primeiro ano carregava um cabo de vassoura incrementado com uma faca de cozinha na ponta, uma espécie de lança improvisada.

- Não tem como se acostumar com o cheiro da morte, não é mesmo?! falou ele seguindo em direção ao canteiro central.

Ele podia sentir as batidas do seu coração por debaixo do uniforme já desbotado, o suor descia pela sua nuca fazendo a camisa ficar grudando em sua pele, aquilo o deixava sem paciência assim como Bia deixava-o sem paciência.

O grupo atravessou a rua, a faixada do Supermercado estava bem deteriorada, partes haviam sido queimadas por um incêndio, no último mês as portas de correr estavam estilhaçadas, pedaços de vidro cobriam o chão assim como murmúrios e gemidos vinham da escuridão que cobria todo o interior do prédio.

- Estão em maior número que no mês passado - comentou Chico, o garoto gorducho do terceiro ano.

- Eu vou na frente, atraio para a seção de hortifrúti enquanto vocês pegam os enlatados e alguns produtos de limpeza - falou Gabriel se pondo à frente do grupo.

O ar dentro do Supermercado era pesado, poeira, restos de alimentos e carne humana podre se misturaram e sufocava o grupo que entrava naquele lugar esquecido, as prateleiras da frente estavam bagunçadas, garrafas de bebida viradas deixavam o chão ensopado de uísque e vinho barato, corpos se acumulavam próximo aos caixas e carrinhos virados jogados de forma aleatória como brinquedos quebrados por uma criança mal criada.

Logo o primeiro zumbi surgiu, um senhor alto e careca com o maxilar quebrado pendurado para um dos lado apenas por um fio de cartilagem, sua barriga inchada estava repleta de tumores arroxeados, sua cabeça era uma bola de boliche preta repleta de veias saltando, ele avançou em direção a Bia que em um movimento rápido com a lança o derrubou por cima de um dos carrinhos, com a lança ela perfurou o osso parietal em um único golpe, a menina sorriu para os amigos.

Do corredor ao lado, os murmúrios abafados dos companheiros do senhor vinham.

- Sigam o plano - falou Gabriel apontando para Seção de Hortifrútis.

O garoto seguiu pela seção batendo o machado nas prateleiras atraindo os zumbis em sua direção, a escuridão só aumentava, ele sabia que aquilo era uma missão suicida, mas ele tinha que fazer, ele tinha que proteger os amigos que ficaram no instituto. Gabriel olhou por cima do ombro, os vultos vinham em sua direção tocando sob o peito, ele acionou a lanterna, a placa de Hortifrútis pendia sob sua cabeça a luz da lanterna projetava as sombras sob o rosto desfigurados dos mortos.

- Vamos nessa! - Falou ele atingindo o primeiro zumbi, uma garota na faixa dos dezesseis anos usando uniforme escolar. O sangue negro se espalhou pelo chão, o corpo já debilitado caiu estremecendo, sempre o primeiro é o mais difícil.

A sombras o seguiam pelo corredor se esgueirando com suas mãos vacilantes a boca aberta com dentes tortos e amarelados os gemidos guturais eram murmúrios de um coral infernal o segundo zumbi surgiu usava apenas uma bata hospitalar o nome Itacor bordado sob o peito que estava desbotado e coberto por uma camada de sangue e bile escura. O zumbi ergue as mãos vacilantes em direção a Gabriel, seus olhos eram um infinito opaco e vazio o menino desviou dos braços raquíticos do morto e com um chute ele estilhaçou o joelho do zumbi que caiu no chão com outro chute esmagou sua cabeça até o sangue jorrar pelo piso de concreto imundo do Supermercado. Ele voltou sua atenção para a esquerda algo parecia ter chamado atenção dos mortos restantes, eles simplesmente ficaram imóveis como se alguém tivesse desligado o que restava da sua força, ele saltou sob o corpo do zumbi recém abatido indo em direção ao corredor de frios os mortos permaneceram quietos o sol entrava por entre as portas quebradas Chico e Bia estavam parados a sombra do logo do Supermercado o sol havia conseguido atravessar as nuvens.

- Temos de aproveitar o sol, vamos logo disse ele passando pelos colegas.

As sacolas em suas costas estavam lotadas de milho, presunto e ervilhas enlatadas assim como outros produtos desde água sanitária a detergente. As ruas estavam vazias naquele momento um pássaro voava tranquilo acima de suas cabeças o cheiro podre havia diminuído o sol parecia ter o poder de afugentar os zumbis, espantar a aura macabra que havia se instalado sobre a cidade.

Logo o portão lateral do instituto se abriu o grupo se jogou para dentro do prédio antes dos ferrolhos e cadeados se fecharem atrás de si, o grupo estava cercado por outros alunos cada um empunhando um bastão de madeira cravejado de pregos nas pontas.

- Chefe disse um dos alunos estendendo a mão para Gabriel.

- Os banheiros ainda estão com água corrente, no entanto os do quarto andar estão ficando com pouca pressão, acredito que até o final do mês a água não chegue até lá, os meninos da física estão pensando em formas alternativas de energia para reativar as bombas principais. Os zumbis do prédio ao lado estão quietos desde o amanhecer, deixaram de aglomerar rente ao muro, mas ainda assim estamos reforçando a estrutura, e as meninas do terceiro B limparam os zumbis do estacionamento sem nenhuma baixa, os carros maiores já foram vistoriados e estão com o tanque cheio, os menores serão desmontados logo amanhã.

- Excelente Jairo, agora irei tomar um banho, estou exausto e sujo de secreção de zumbi, assim que terminar reúna os representantes de sala e os membros dos cursos superiores no refeitório, temos que discutir a respeito das expedições a procura de alimento, os produtos do Pão de Açúcar já estão no fim.

- Ok, senhor? - disse Jairo olhando para Gabriel.

- Diga - disse ele se encaminhando para o banheiro.

- Acha que veremos nossas famílias de novo?

- Já estamos aqui há seis meses, você acha que poderemos ver nossas famílias de novo?

- Não - respondeu o rapaz.

- Então amigo, você já tem sua resposta, e nós aqui somos uma família.

-Está bem senhor - disse Jairo caminhando para refeitório.

Gabriel entrou no banheiro, por um instante ele não reconheceu o próprio reflexo o cabelo estava comprido os olhos fundos e marcados por olheiras, "envelheci dez anos em seis meses" pensou ele, deixando o machado sob a pia junto com as demais roupas, a água estava morna e até ali no segundo andar, bem mais fraca, quanto tempo mais ele continuaria a fazer aquilo funcionar?! Água, alimentação, manter os mortos confinados no prédio vizinho, coisas que ele não deveria pensar, teria sido tão mais fácil ter deixado a responsabilidade nas mãos de outro, mas quem quer ter a responsabilidade de 25 vidas nas mãos?! Muito provável eles já tivessem sido atacados e transformados.

School DaysWhere stories live. Discover now