Capítulo 2

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Sinto água entrando em contato com o meu rosto e desperto imediatamente, quando noto que estou amarrada a uma cadeira e logo a minha frente vejo um homem bem vestido, com uma postura séria e ele me encara sem esboçar nenhuma reação.

- O que estou fazendo aqui? Quem é você? Eu juro que vim em paz, não tô aqui para criar problemas. – pergunto e me justifico já em lágrimas.

- Quando alguém de outra facção vem buscar abrigo na minha comunidade, acredite, isso já é um problema. - ele dá uma pausa, puxa um cigarro do maço que estava em seu bolso e o acende – A propósito, sou eu o dono do morro.

Calmamente ele traga seu cigarro e continua:

- Sabe, garota, eu acho que hoje é seu dia de sorte. Eu acordei de bom humor. Quando meu rádio tocou, perguntando se podiam te executar, eu pensei um pouquinho e dei a chance desse meu bom humor responder por mim e só por isso você está aqui. O que não significa que eu posso mudar de ideia a qualquer momento. – ele deu um sorriso debochado.

- Eu não vim até aqui para morrer. Caso quisesse morrer, ficaria em casa mesmo. – relaxei minha postura e sem querer minha fala saiu com um tom de deboche também. – Eu sou telespectadora cascuda do crime, vi meu pai nessa vida durante meus 24 anos de vida. Eu não sou besta, sei que eu sou problema aqui. Mas eu estou aqui pra me oferecer para trabalhar pra você. Não tô te pedindo proteção em troca de bônus celestiais. Poupa minha vida que eu me torno tua funcionária aqui no morro.

Sempre fui boa em negociações e eu aposto todas as minhas chances nessa que estou fazendo agora.

- Ah, trabalhar pra mim? – ele me lança um olhar maldoso de cima a baixo. – Agora eu vi vantagem!

Fico enojada da situação. O babaca entendeu tudo errado! Homens, só pensam com a cabeça de baixo. Por isso mulheres são melhores empreendedoras que os homens. O idiota se levanta, vai até a porta e grita um de seus homens e manda me desamarrar e levar até o andar de baixo.

Após ser desamarrada, eu desço as escadas de uma casa (se é que aquele moquifo pode ser chamado de casa), são paredes que estão ainda no tijolo e chão sem nenhum piso. Ao chegar no andar de baixo me deparo com dezenas de mulheres só de roupa intima trabalhando. Os serviços são divididos entre embalar drogas e contar dinheiro.

- Pode começar o serviço. – Ele se aproximou de mim e falou. Antes de me dar as costas, se aproximou do meu ouvido e sussurrou - mas você ainda está com muita roupa. Tira!

Eu revirei os olhos. Fala sério! Minha mãe sempre me criou dizendo que eu nunca seria marmita de traficante. Eu já não sou alguém com muitos princípios, mas eu perderia o que restaram deles aceitando aquela humilhação de ficar ali só de calcinha e sutiã simplesmente porque homens são nojentos e aproveitadores do corpo feminino. E além do mais, eu sou formada em administração, tenho especialização de como melhorar negócios. O idiota, vulgo dono do morro, teria mais lucro com meu cérebro do que com meu corpo.

- Você só pode tá brincando, né? Eu sei que você não pediu meu currículo, mas, eu possuo ensino superior em Administração, tenho especialização em melhorar negócios e parei no 4º período de Contabilidade. Seja inteligente. Aproveite meu cérebro, não meu corpo. – muito abuso da minha parte falar assim com quem pode tirar minha vida a qualquer momento, mas me diz, o que eu tenho a perder? Nada.

- E você acha que sua faculdade te dá o direito de falar assim comigo? Ou você esqueceu que aqui você não passa de uma fodida que eu posso matar a qualquer momento? – ele cospe as palavras. Droga! Que cara ignorante.

A história das pessoas no mundo do crime vão passando de ouvido em ouvido. E eu sabia por alto a história do idiota arrogante que estava a minha frente e eu vou usar isso em meu favor. Começo a argumentar:

- Eu sei que você assumiu o morro há pouco tempo. Assim como eu, você também ficou órfão. E acredito que a pressão de tocar o negócio que o seu pai cumpriu com tanta dedicação deve ser muito grande. Fora o fato que tem muito peixe grande de olho no teu cargo e esperando só um vacilo teu pra cair matando no teu morro herdado. – faço uma pausa e noto que ele está me encarando com um olhar confuso. – Se eu estiver errada, por favor, me interrompa.

Noto que não sou interrompida, então continuo.

- Assumir uma gestão nem sempre é fácil. Principalmente quando a gestão anterior era muito boa. O papel de uma gestão é sempre o da inovação. E eu posso te ajudar com isso. Mas se você quiser usar apenas o meu corpo como exibição aqui, infelizmente, suas oportunidades de inovação ficarão limitadas, querido. – nessa hora eu sinceramente não sei mais o que se passa na minha cabeça. De fugitiva refugiada a negociadora.

Ele fica em silêncio por um curto período de tempo e há olhares curiosos a nossa volta. Ninguém esperava por esse meu discurso, nem mesmo eu. O sr. Arrogante dono do morro interrompe o silêncio e diz para um de seus caras:

- Desocupa o barraco aqui do lado e põe a garota lá. – não entendi nada, sua falta de expressão não me deixa tirar conclusões. Mas de uma coisa sei: eu não morri e nem precisei passar pela humilhação de embalar drogas seminua.

(...)

No barraco não tem nada além de um colchão com um lençol velho e uma luz amarela ligada por uma fiação barata. Mas para quem passou entre a vida e a morte por várias vezes num só dia, tá bom. Um dos vapores me deixa no barraco e fecha a espécie de porta que tem nele. Ainda solta com ar de deboche uma frase de boa estadia. Retiro meu tênis, sento-me no colchão e penso no quanto queria apenas um copo d'água ao sentir minha boca seca. Suspiro forte... é um suspiro com dor. Ah, e falar em dor, a ferida do meu braço ainda não foi tratada. O sangue já está seco, porém, a ardência da mesma ainda incomoda. Olho as quatro paredes sujas em minha volta, taco a cabeça para trás, fecho os olhos e só sinto as lágrimas rolarem.

É a primeira vez que me encontro numa situação tão precária assim. Já passei por momentos dolorosos, claro. Como a morte da minha mãe, por exemplo. A vida nunca foi um mar calmo. Mas fisicamente eu sempre tive conforto. Minha casa sempre foi uma das melhores da comunidade, sempre andei com as roupas das mais caras marcas, frequentava escola com ensino de primeira linha, meus pais insistiram a matrícula da faculdade, mesmo que eu nunca tenha tido o desejo de trabalhar na área. A vida sempre teve seus altos e baixos, mas nunca deixou de ser boa. Exceto naquele momento, naquele lugar sujo e com odor péssimo. E a sensação de dúvida sobre o futuro da minha própria vida me causava um pavor enorme. Deito-me no colchão tentando ignorar as condições do lugar e antes de apagar no sono eu vejo novamente a minha miragem na porta do barraco, dizendo:

- Ninguém nunca disse que seria fácil, querida. – ela sorri amigavelmente.

Essa imagem minha do futuro me agrada e me traz esperança.

Esperança.

Preciso me agarrar a esperança que dias melhores virão, isso me impulsiona a sobreviver. 

Que dó da Bella nessa situação :(

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Dona do Morro.Where stories live. Discover now