34. [ERIC] MENTIRAS

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Na manhã seguinte ao atentado, Kael apareceu na minha porta, tinha em mãos um relicário de cobre, onde Dumu guardava um dos ingredientes que mais estimava, pedra de bezoar, usada para sanar envenenamentos.

A mão de Aella foi cortada pela lâmina dele, o sangue que minava da ferida era escuro, mas fora alegações de uma tontura leve e dor nos pés garantiu que ficaria bem se fosse embora mais cedo.

Os mesmos pontos dourados que vi em seus ombros na noite em que tentou entrar na masmorra ao ouvir a canção que mais ninguém era capaz de escutar também surgiram e desapareceram depressa pouco antes de deixá-la em segurança. Teria sido um desastre se tivesse acontecido no palácio.

Se eu não tivesse chegado a tempo, Kael teria rompido a tranca, ignorando as palavras de advertência dos criados.

—Eric, só ao alvorecer me recordei que meu punhal estava envenenado. Vim o mais rápido que pude mas seus criados estão tentando fazer com que sua senhora morra.—

Os dedos pálidos correram a grossa tranca, bloqueando a passagem.

— Já foi tratada, Kael. Minha senhora estaria morta se dependesse dos seus cuidados. Usei a minha, ainda tinha a que ganhei de Dumu.-

Cuspi as palavras em cima dele, me colocando na frente da porta.
A mentira saiu dos meus lábios depressa, sem pensar, foi instintivo. Só não queria que ele chegasse perto dela.

—Está exausta, vomitou sangue, e certamente não deseja vê-lo.—

Franziu o cenho, decepcionado com a revelação.

—Quanto sangue?—

Insistiu.

—Muito.—

— É uma pena, tinha esperança de que ela ficaria bem.—

Não se desculpou, tampouco insistiu, me deixando só e inquieto, sem saber se fingia tratar da minha esposa doente ou saía feito louco pelas praias à procura do seu cadáver.

A comida perdeu o sabor, sequer encontrava tempo para beber, me revezando em conseguir ingredientes para tônicos desintoxicantes e poções fortalecedoras que seriam jogadas fora, enquanto esperava o anoitecer.

Meu coração só se aquietou ao vê-la chegar.

Aella estava perfeita, como sempre.

Rosto bonito, corado, e o andar vacilante de quem sofria para permanecer num mundo que não era o dela.

Sorriu, me abraçou e perguntou se eu estava doente e precisava de ajuda, pois o quarto fedia a remédios.

∞∞∞

Duas estações completas, foi o tempo que levou para que o governante de Ashur declarasse oficialmente sua independência, assassinasse os enviados de Sion, tomasse suas propriedades e arregimentasse um exército.

A raposa velha, como Dumu o chamava, era de fato astuta. Esperou que a instabilidade na corte aumentasse, o que aconteceu mais rápido do que o normal, pois nem o povo e nem os conselheiros viam com bons olhos Kael ganhar poder.

Um estrangeiro sem raízes em Sion chefiando os ritos e ocupando a posição de Sumo Sacerdote? Nenhum dos nobres aceitaria algo assim de cabeça baixa.

— Existe uma cidade com o seu nome, sabia? Alguns dizem que pode se tornar algo maior em breve. —

Falou Hasret, não era bem uma cidade, mais parecia um povoado esquecido pelos deuses.

—Já não bastavam as canções ? —

Resmunguei.

— Não sabe como me arrependo de ter composto a primeira. —

Naquela noite o mar lavou nossas lágrimasOnde histórias criam vida. Descubra agora