04.SAIPH

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Você suspira, desvia o olhar
Consigo ver claro como o dia
Fecha os olhos, tão receoso
Por trás desse rosto de bebê.

Cigarrete Daydreams, Cage The Elephant

A VIDA SEMPRE DÁ UM JEITO de nos surpreender, seja de um jeito bom ou ruim

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A VIDA SEMPRE DÁ UM JEITO de nos surpreender, seja de um jeito bom ou ruim. Mas o importante mesmo é saber lidar com essas surpresas e você nunca soube lidar com isso. 

Com o tempo eu percebi que eu te contava tudo, qualquer coisa que acontecesse na minha vida super sem-graça de adolescente você sabia, mas você nunca me contava seus problemas, você sempre os escondia.  

Eu passei a notar que quando alguma coisa acontecia você encolhia os ombros, desviava o olhar e sempre parecia distante. Esses eram os sinais que me faziam perceber que havia algo errado.

Quando passamos a namorar os sinais mudaram, você evitava me beijar e passava muito tempo contemplando o céu. Era como se esperasse que alguma resposta aparece entre as nuvens.

Se eu perguntasse você dizia que estava tudo bem e aí sorria e puxava algum assunto bobo, ou fazia uma piada idiota.

Ficamos desse jeito por muito tempo, até que eu aprendi a não questionar. Você aparentemente não queria que eu soubesse o que estava acontecendo e eu simplesmente fingia que não via.

Naquele inverno de 2001 você passou a frequentar mais minha casa. Perdi as contas de quantas vezes você apareceu na minha janela de madrugada com os olhos inchados, pedindo para passar a noite.

E então eu cedia o espaço para você deitar e isso se repetiu por muitas semanas, eu percebia que você não dormia, passava a noite em claro fazendo carinho no meu cabelo e aparentemente perdido em devaneios. Eu fingia que dormia, mas um sentimento de angústia tomava conta do meu coração.

Tinha alguma coisa acontecendo.

Em uma dessas madrugadas você se levantou sorrateiramente e checou se eu dormia, eu como uma boa integrante do clube de teatro escolar fingi que estava dormindo, e então quando eu abri os olhos você estava sentado na janela com algo entre os dedos.

Eu mal acreditei quando vi aquele cigarro nas suas mãos. Logo você, que sempre dizia que fumar era algo bobo e que jamais estragaria sua vida com aquilo.

Você deveria ter seguido seu próprio conselho Evan.

Eu fiquei ali, deitada, não fiz nada, só observei você chorar, enquanto assoprava a fumaça no ar, eu nunca tinha visto você chorar.

E então, depois que aquele cigarro acabou você mascou um chiclete e voltou para a cama, deitou como estava antes e acordou no dia seguinte como se nada tivesse acontecido, não era surpresa alguma, mas você não me contou nada.

Naquele dia eu fiquei com aquilo entalado na garganta, eu estava louca para perguntar, mas eu não sabia como, não sabia se deveria, eu não sabia se aquilo doía em você.

Então passei o resto do dia distante, fria e com a cara enfiada em um livro que peguei emprestado na biblioteca da escola.

Mas na noite daquele dia, enquanto estávamos observando as estrelas no telhado eu não me aguentei, encarei você com toda minha coragem e perguntei o que estava acontecendo.

Você trincou o maxilar, fechou os olhos, respirou fundo e me respondeu a mesma coisa de sempre: "nada Ophel".

Eu fiquei tão brava Evan, você estava mentindo para mim e sinceramente uma coisa que eu prezava muito era a confiança. Então eu juntei toda minha raiva e disse que eu havia visto você fumando e chorando na noite passada.

Seus olhos se arregalaram e você prendeu a respiração, eu senti suas mãos tremerem em volta do meu corpo e então você me olhou, não era o olhar que eu estava acostumada, era frio, distante, não parecia você.

Me lembro muito bem de você pronunciando que foi um momento de desespero e que isso não se repetiria.

E então eu perguntei mais uma vez o que estava acontecendo, e então você desabou.

Naquela noite você me contou tudo Evan, contou que sua mãe descobrira um câncer e que ele já estava avançado, contou que sua irmã mais nova foi morar com seu pai para não dar mais trabalho para sua mãe, contou que agora viver na sua casa era um inferno e que não conseguia olhar para sua mãe tão abatida, você também me contou que tinha desenvolvido um vício por cigarros.

Eu não sabia se ficava mais chocada por conta tanta coisa que tinha acontecido ou por você esconder aquilo.

Mas eu só te abracei e enxuguei suas lágrimas, não era um bom momento para eu te dar uma bronca sobre cigarros e segredos.

E então você me prometeu que não fumaria mais e que começaria a me contar tudo e eu acreditei.

Mas você não cumpriu sua promessa.

Com o passar dos dias eu percebi você mais distante ainda, mais pálido ainda e com bolsas tão grandes embaixo dos olhos que era a primeira coisa que se notava quando alguém te olhava.

E então eu soube por minha mãe que tinha ouvido a vizinha comentar que sua mãe estava em estado terminal.

Como eu senti raiva de você naquele dia, mesmo que algo tão horrível estivesse acontecendo contigo meu coração não cedeu espaço para a compaixão. Você tinha me prometido que me contaria tudo e você jogou a promessa no lixo.

Quando você bateu na minha janela de madrugada Evan eu joguei tudo na sua cara, eu bati em você, eu quebrei um abajur na parede, chamei você de nomes que não gosto nem de lembrar e mandei você sair da minha casa, eu espero que você tenha me desculpado.

Você não disse uma palavra, nem expressou nenhum sentimento, você só enfiou as mãos no bolso do moletom e me olhou com aquele olhar frio e distante, aquele olhar começou a fazer parte de você.

Nós passamos um bom tempo sem se falar e aquela foi nossa primeira briga de verdade. Foi a pior fase da minha vida, você fazia tanta falta, mas eu não cedi Evan eu continuei sem falar com você, continuei passando reto, eu fui uma ridícula, uma egoísta, eu nunca me perdoei por isso.

Porque talvez se eu tivesse ficado do seu lado as coisas teriam sido diferentes.

Mas foi no dia 22 de agosto de 2001, às oito e trinta e seis da noite que eu recebi a notícia de que sua mãe havia falecido.

Se alguém tivesse me dado um tiro não teria doido tanto. Eu gritei, chorei e corri para sua casa, você estava sentado em um sofá, com a cabeça baixa, olhar distante e os olhos muito vermelhos.

Eu abracei você Evan, implorei para você me perdoar, desejei meus sentimentos e você não disse uma palavra, você nem desviou o olhar, continuou congelado, de cabeça baixa e de mãos enfiadas no bolso do moletom. Mas eu permaneci ao seu lado, fiz de tudo para compensar o tempo perdido, eu estava me sentindo culpada, era como se toda a dor que você sentia estivesse sendo passada para mim.

Eu só saí do seu lado quando precisei me arrumar para ir ao velório e quando eu voltei, seu pai me disse que você estava no seu quarto. Eu subi e entrei sem bater na porta, você estava debruçado sobre sua escrivaninha.

Quando eu cheguei mais perto eu tive vontade chorar Evan, um pó branco estava derramado na mesa, e tinha um pouco dele no seu nariz também, quando abri sua gaveta eu me espantei ao ver a quantidade de saquinhos com o mesmo conteúdo da mesa que ainda tinha ali.

Você estava com os olhos vidrados em um jarro sobre sua mesa e pareceu nem perceber quando arrastei você para sua cama e limpei aquela mesa me certificando de que não sobrasse nem um grão daquela droga.

Mas não adiantou eu me livrar dela, porque você comprou de novo.

Escrito Nas EstrelasWhere stories live. Discover now