Capítulo 6

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    Acordei com um cheiro maravilhoso de panqueca e leite quente. Me levantei e olhei para os lados, Charlote não estava ali e Ayanne também, andei de joelhos até a janela. Todos lá em baixo estavam tão felizes, tinha um adolescente comprando flores, crianças correndo em volta da fonte congelada e adultos conversando. Abri a janela e respirei o ar gélido de lá de fora, era tão bom, fechei a janela.
    »»——⍟——««
    A mãe e a irmãzinha de Ayanne tinham saído, já fazia um tempinho, então só estavam eu e Ayanne na casa. Estava na cozinha junto com ela, a mesma lia o mesmo livro de ontem, não tinha reparado, o nome do livro se chamava antes, mas ele se chamava “Os Guardiões”. O café da manhã eram rocambole de chocolate e um café tão forte que não dava para sentir o gosto da açúcar, também tinha um pouco de chocolate quente. Ayanne fechou o livro, não marcando a página que tinha parado, ela pegou um pouco do seu chocolate quente e derramou em cima do rocambole, depois ela segurou a faca e o garfo, que estavam do lado do prato, então ela cortou o rocambole em várias partes. Antes de começar a comer ela se levantou, andou até a sala e não demorou muito para voltar, ela me entregou um livro com o nome “O Colégio Norixius” embaixo do título estava escrito entre parênteses “Nori”, olhei para a garota, ela já estava comendo, fiz o mesmo que Ayanne, cortei o rocambole em vários pedacinhos, não coloquei chocolate quente porque fiquei medo de não gostar e desperdiçar todo aquele delicioso rocambole, que, só pelo cheiro, parecia estar divino. Abri o livro, enquanto lia eu cutucava os pedacinhos do rocambole. Era um livro que falava sobre um colégio dentro de dois grandes “prédios” cada prédio tinham vinte e cinco andares, dez acima da terra de quinze abaixo, os dois eram ligados por uma ponte no vigésimo andar e um túnel no quinto andar, lá os alunos aprendem magia draconiana, que é bem mais eficiente que magia élfica, mas também aprendem magia élfica, por ser ligada a natureza, também tem dormitórios, ele ficam no primeiro, segundo, terceiro, nono, décimo e andar de cada prédio, o local pode alojar duzentas pessoas em cada andar tem vinte quartos e em cada quarto duas pessoas. Eu fechei o livro e o coloquei do lado do meu prato.
    — Esse é o Colégio que a minha mãe tinha dito ontem. —Disse Ayanne— Chegou uma carta hoje, vamos partir amanhã... E vamos ficar lá por dez anos, vamos voltar pra casa nas férias de Inverno e verão.
    — Calma, dez anos? —Perguntei. Mais dez anos em um lugar parecia algo assustador.
    — Dez anos. —Ela afirmou. Apesar de sorrir, eu podia sentir que ela estava tão desconfortável quanto eu— Por isso, hoje a gente vai andar pela cidade, vamos comprar roupas para você.
    — Quê?
    — Eu não sei por que... Mas eu gostei de você! —Ela sorriu.
    Nunca tinham me dado um sorriso igual aquele, tão sincero e meigo. Ela pegou o último pedaço do rocambole e colocou na boca, então eu reparei o quanto ela era bonita, como aquelas princesas dos livros, como não, mais bonita que aquelas princesas dos livros, agora ela parecia algo celestial, tão lindo que não consigo nem descrever o tamanho de sua beleza. Ayanne me fitou e virou o rosto, então eu percebi, estava a encarando demais, virei o rosto para o lado oposto do rosto dela. Charlote pulou do meu colo e se espreguiçou no chão, ela olhou para mim e para Ayanne, já entendo oque estava acontecendo, escutei uma risada nos meus pensamentos, nunca tinha ouvido Charlote rir. Peguei o último pedaço do rocambole e dei para Charlote, ela comeu rapidamente, depois lambeu os beiços. Ayanne se levantou, pegou meu prato e colocou em cima do seu, depois andou até a pia e colocou ambos lá dentro, ela saiu por alguns instantes e voltou com casacos, ela jogou um na minha cara, quando eu tirei ele de cima de mim, vestindo ele, Ayanne já tinha colocado o dela, era um casaco fofinho, era feito de, provavelmente, veludo, sua cor era um laranja puxado para o rosa avermelhado. Ela usava uma blusa rosinha com um gatinho estampado e uma calça moletom preta. O qual ela tinha jogado em mim era um casaco com touca, branco, com detalhes pretos na parte de trás e dois bolsos. Ayanne pegou Charlote e s colocou em cima da minha cabeça, depois pegou meu pulso e correu comigo para fora da casa.
    Começamos a andar pelas barracas, as mesmas ficavam perto de onde eu fui pega pelos guardas, lembrar disso me dava arrepios, o medo de perder a Charlote era maior do que o medo de morrer. Charlote agora era uma doninha, sentada no meu ombro, cada crianças que passava perto queria tocá-la. Não tinha reparado quando eu fui para a casa da Ayanne, mas as luminárias não tinham fogo, eram um tipo de poste. Cutuquei Ayanne e apontei para o poste.
    — Tecnologia não era proibida? —Perguntei.
    — Bem, o rei não é o tipo que segue ordens de uma rainha falsa.
    — Rainha falsa?
    — É, você sabe, a rainha vermelha é a rainha verdadeiro.
    — Ah, sim.
    Pensei se podia contar a ela que eu não era desse mundo, mas achei melhor ficar quieta para não causar problemas. Paramos em frente a uma loja.
    — Animais não são permitidos. —Ela disse.
    Então Charlote se escondeu dentro do meu casaco. Entramos na loja, lá dentro estava cheio de roupas, tinham desde casacos para o inverno mais frio à regatas para o verão mais quente, oque era bem estranho, não tinham verões no continente, certo? Enfim. Ela me fez experimentar várias roupas, compramos uns dez conjuntos de roupas, alguns para verões e outros para invernos, a grande maioria eram azul marinho, azul-arroxeado, ciano, rosa e vermelho, Ayanne disse que essas cores combinam muito comigo, toda a compra custou um preço baixo, apenas cinco moedas, Ayanne explicou que, como ela já tinha feito vários trabalhos para a dona da loja, ela tinha um grande desconto nas compras, as coisas saiam por, mais ou menos, trinca porcento do preço. O que a Ayanne tinha feito para aquela mulher para valer tanto? Saímos da loja e voltamos para a casinha, Yris e a pequena Kira já haviam voltado, sem cumprimentar ninguém nos subimos para o quarto, Ayanne jogou as sacolas cheias de roupa em cima da cama, depois olhou para mim com um sorriso.
    — Vamos tomar banho. —Disse ela.
    “Calma, ela quer tomar banho comigo?” meu pensamento fez Charlote acordar. Senti meu rosto ficar quente.
    — Calma, nunca fez isso antes?
    — Não...
    — É normal amigas fazerem isso. Nos somos amigas, né?
    — Sério?
    — Nos somos.
    Abaixei a cabeça para esconder meu sorriso, minha primeira amiga, nunca tive amigos, será que a Alice também era minha amiga? Ou apenas uma conhecida? Bem, isso não importava tanto, tinha que arranjar coragem para fazer aquilo. Ela amarou seu cabelo em um coque alto depois pegou duas toalhas.
    — Eu vou na frente, enquanto você se decide.
    Ela saiu do quarto com as duas toalhas. Olhei para Charlote, que agora estava em cima da cama olhando as roupas.
    — Quantas roupas vocês compraram? Parece ter milhares aqui.
    — Foram muitas mesmo...
    — Vai lá com ela.
    — Quê? Eu estou com vergonha.
    — Não fique, você é linda.
    — Eu não disse que me acho feia.
    — Mas pensou em dizer. Para de graça, Lily, vai ficar tudo bem, ela parece gostar de você.
    — Ok...
    — Vou ficar esperando aqui.
    Charlote se deitou em cima de um travesseiro. Sai do quarto, andei até o banheiro com muita vergonha, lembro-me que meu pai, quando bêbado, me dizia muitas coisas sobre o corpo de outras pessoas, eu tenho certeza que a atual dele foi traída por ele, mas ela não se separa dele porque ele é rico, provavelmente. O que ela, uma mulher muito bonita e gentil, estava fazendo com o meu pai, um homem rabugento e que nem chegava perto da beleza? Dinheiro. Entrei no banheiro, já estava tudo com névoa, impedindo que eu vê-se Ayanne.
    — E-Eu vou me virar. —Disse Ayanne. O gaguejo dela me fez entender que era a primeira vez dela fazendo isso também— Pronto.
    Eu me despi e entrei na grande banheira, estava de costas viradas para Ayanne, eu senti algo tocar meu cabelo.
    — Posso? — Perguntou ela— Quero pentear seu cabelo.
    Afirmei fazendo apenas um “hm”, ela deu uma risadinha, depois começou a pentear meu cabelo de um jeito tão delicado.
    — Seu cabelo é tão macio e lindo. —Ela deu uma longa pausa, depois senti suas mãos tocarem minha costa, o que me fez sentir um grande arrepio— Uau, você tem sardas na costa também, achei que era só no rosto.
    Minhas sardas imperceptíveis, ela conseguia vê-las. Senti uma certa vergonha, ela voltou a pentear meu cabelo. Aquilo era meio estranho, as pessoas da casa sempre diziam que pessoas muito íntimas tomam banho juntos, como amigas, irmãs, pessoas casadas, de acordar com eles, homens ou garotos não podiam tomar banho juntos, porque isso era antiético, garotas ou mulheres tomando banho juntas com segundas intenções não era permitido, porque era antiético também, sabe aquelas coisas que você ouve mas não ouve ao mesmo tempo? Era isso oque acontecia comigo quando eles tentavam explicar o por que disso ser antiético, já ouvi meu pai dizer que homens não podiam se amar nem mulheres podiam amar outras mulheres, porque isso era errado, toda vez que ele tentava me explicar eu não ouvia, minha mente era tomada por um pensamento como “Eu posso e vou amar quem eu quiser, sem essas regras idiotas”.
    — Então, Lily.
    — Sim?
    — Por que tem essa marca atrás do seu pescoço? Parece que foi enforcada e só nessa parte machucou.
    — Quê? Eu não me lembro de como isso foi parar ai. Na verdade, eu não me lembro de boa parte das coisas que aconteceram comigo.
    — Uau, eu também, as vezes o nosso cérebro bloqueia algumas das nossas memórias.
    — Sério?
    — Sim. Isso não é o caso da Kira.
    — Falando nela, o que aconteceu?
    — É algo meio complicado.
    — Eu posso tentar entender.
    — No reino, tinha uma escola, a gente morava lá, por causa das melhores condições de vida, enfim, a cauda da Kira era visível para todo mundo. —Ela fez uma pausa— As crianças batiam, judiavam dela todo dia, por ela ser diferente, uma vez ela chegou a cauda quebrada casa, meu pai disse a ela que não deveria deixar os sentimentos guardados, que caso as crianças fizessem aquilo de novo ela deveria fazer algo a respeito, dito e feito, no dia seguinte a isso, um mensageiro bateu a nossa porta disse que tinha acontecido algo muito ruim na escola, dez crianças tinham morrido queimadas, minha mãe já sabia quem tinha feito isso, no exato instante que o mensageiro disse que a Kira estava na enfermaria e não falava, minha mãe saiu correndo de casa. Kira nunca mais falou, ela só conseguiu contar pra minha mãe oque tinha  acontecido, as crianças vieram brigar com ela, de novo, então ela gritou e, no segundo seguinte elas estavam queimando e gritando. Acho que ela nunca mais falou com medo de acontecer de novo.
    Ela parou de falar, dando a entender que aquele era o final da história. Onde estaria o pai de Ayanne? Será que tinha fugido ou a mãe dela tinha o mandado embora?
    — No dia seguinte, como meu pai era o único dragão no reino, desconfiaram dele, então ele foi enforcado. Achavam que uma garotinha feito Kira não conseguiria ferir nem uma mosca. Nos saímos de lá e viemos para cá. Kira tinha cinco anos quando tudo aconteceu e eu tinha dez.
    Abaixei a cabeça, não sabia oque dizer, talvez um “sinto muito”? Ou alguma combinação de palavras boas o suficiente para não fazer ela se sentir triste ou até culpada por não poder ajudar a pequena Kira. Ela parou de pentear meu cabelo, pude escutar ela saindo da água, depois de minutos ela colocou uma toalha ao meu lado, eu, impulsivamente, olhei para ela, a toalha cobria apenas metade de seu corpo, ela sorriu, depois saiu do banheiro, me levantei rapidamente e vesti a toalha.
    »»——⍟——««
    Ayanne vestia um vestido longo, que chegava até seus pés, ele era lilás com alguns babados no meio e na barra do vestido, mangas longas e bufantes, e uma bota de couro preta de cano baixo. Ela me fez vestir uma das roupas tínhamos comprado, um casaco preto, com alguns detalhes brancos aleatórios e uma calça combinando e uma bota idêntica a de Ayanne. Estávamos em uma espécie de lanchonete, uma estrutura magnífica de madeira branca, formando um coração no teto, as janelas tinham detalhes imperceptíveis de coração, isso me fez ter a impressão que o dono dali era bem apaixonado. Estávamos tomando sorvete líquido, de acordo com Ayanne aquilo se chamava milkshake, nunca tinha tomado aquilo antes, era tão gelado quanto o ar lá fora, ela disse que o milkshake podia ser tomado em qualquer época do ano, no inverno podia deixar as pessoas doentes, mas, mesmo assim, nunca deixaram de vender nessas épocas. Ela também me contou que o ar não era sempre tão frio, no verão o clima era morno mais puxado para o frio, no outono o clima era um friozinho agradável em certos dias e em outros um frio de matar, no inverno o frio era tão intenso que os bebês que nasciam nessa estação geralmente morriam e na primavera era tudo das outras estações só que em um único dia. De acordo com Ayanne estávamos no último dia do inverno.
    — Isso é tão delicioso! —Disse Ayanne— Sabe? Eu já tomei isso umas mil vezes, mas sempre que eu tomo outra vez, parece que é a primeira vez que estou engolindo esse líquido maravilhoso. Enfim, temos que terminar isso rápido, porque precisamos voltar pra casa e fazer nossas malas para ir ao colégio.
    — Que horas iremos ir?
    — Umas quatro da manhã. O caminho até lá é longo, vamos em um barco voador.
    — Barco voador...? Avião?
    — Avião? Não está se referindo aquele pássaro gigante que transportavam as pessoas antigamente?
    — Isso.
    — Não é permito.
    — Eu já sei.
    Ela riu e eu também, não vi graça naquilo, mas a risada dela era contagiante. Ela tomou seu último gole de milkshake, enquanto eu ainda estava na metade do meu. Ayanne segurou minha mão e sorriu.
    — Sua mão é tão gelada. —Ela disse.
    — Sério?
    — Sim, não está com frio?
    — Um pouco. Deve ser por causa do milkshake.
    — É, deve ser por causa disso. Vamos, você pode ir tomando no caminho, temos que arrumar nossas malas e descansar.
    — Ok.
    Ela se levantou, segurou minha mão e me levantou.
    »»——⍟——««
Senti algo quente no me rosto, me forçando a abrir os olhos. Era Ayanne, ela estava me encarando com a mão na minha bochecha, quando ela percebeu que eu tinha acordado sorriu. Ayanne se levantou e saiu do quarto. Me levantei rapidamente, era, provavelmente, madrugada, talvez a hora de ir para o Colégio?Sai do quarto, no corredor tinha uma espécie de sombra abaixada, de joelhos, me aproximei lentamente, a sombra se virou, sua boca estava cheia de sangue, na sua frente estava Ayanne, seu suéter estava cheio de sangue, seus olhos sem vida e seus órgãos expostos, coloquei a mão na frente da boca, meu estômago parecia se mexer. Apertei com força minha barriga, fechei meus olhos, uma luz estranha apareceu na minha frente, escutei vozes, a dor do aperto na minha barriga tinha sumido, minha mãos agora estavam encostada em algo quentinho e minha cabeça apoiada em algo não muito confortável, abri os olhos e vi o céu noturno, tentei levantar a cabeça, mas algo me impedia, olhei para baixo, estava encostada na Ayanne? Aquele sonho era tão real, tão real... Ayanne levantou a cabeça e eu também, olhei para ela, agora ela parecia mais alta que antes, no meu colo estava Charlote, em sua forma de doninha, ela dormia.

Lilian FosWhere stories live. Discover now