Daniel

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☼ Além do Sol | Capítulo 1

Maio de 2005.


     Não estavam brincando quando me disseram que a adolescência seria uma fase complicada. Daqui a um mês completarei longos treze anos de vida. Sei que parece pouco, mas é como se uma montanha-russa de informações cruzasse o meu cérebro a cada minuto.
    Minhas responsabilidades estão aumentando a cada dia, sou praticamente um adulto precoce. Também sou o homem da casa nas horas vagas, mas não significa que mando em alguma coisa. Se dependesse de mim, não dividiria o quarto com a Maria Lúcia, por exemplo.
    Eu sei que ela faria o mesmo. Irmãs mais velhas gostam de privacidade, só que nós garotos curtimos tanto quanto elas. Jovens precisam de uma certa sensação de liberdade, por mais falsa que seja.
    Nossos pais estão juntos há dezessete anos, já que se casaram pouco antes da minha irmã nascer. Tento não opinar na relação deles e o que penso, costumo guardar para mim... mas definitivamente não são felizes, embora finjam muito bem. Na verdade, costumavam fingir.
    Minha mãe, Maria Helena, aprendeu a costurar com minha avó durante a juventude e desde então se dedicou a isso. Hoje trabalha em uma fábrica da cidade e se autodenomina como uma grande profissional. Também se empenhou demasiadamente no crochê e tricô, um passatempo saudável para distrair a cabeça. Não queria admitir, mas gostei bastante de todos os suéteres que ela já me fez.
    Teve o vermelho, o listrado, os de gatinhos e vários outros, todos muito bem feitos.
     Já o meu pai, Santiago, é catorze anos mais velho em relação à ela. Está desempregado desde que me conheço por gente, mas por algum motivo ele coleciona uma pilha de livros culinários. Aquele homem fazia o melhor bolo de cenoura que eu já comi na vida, mas sem calda de chocolate, ele odiava.
    Mas sinceramente, nunca nos falamos direito e até evito olhar em sua direção. Hoje em dia ele não toca mais nos livros e nem deixa a casa com cheiro de bolo, apenas com a fumaça do cigarro.

     Temos o costume de nos reunir na mesa antes do jantar, fazer uma oração e agradecer por tudo o que Deus nos tem feito. Minha mãe não é religiosa ao extremo, mas sinto que ela precisa acreditar em alguma coisa para se manter distraída ou longe dos problemas. Uma pena que isso parecia não funcionar.
    Certa vez, trouxe uma imagem de um metro e meio de Nossa Senhora de Fátima e até hoje deixa num altar bonitinho ao fim do corredor. Meu pai disse que aquela era a maior bobagem do mundo. Agia como um cético, radical e intolerante o tempo todo...
    Era uma relação fria, de poucas palavras, olhares tortos e algumas indiretas. Se um dia eu resolver me casar, juro que vou pensar mais de mil vezes, pelo menos.
    Lúcia e eu temos uma beliche, na qual ela nunca me deixou dormir em cima. Na parede, um grande espelho redondo (presente de nossa avó) e ao lado, um pôster do Mamonas Assassinas. Era dela obviamente, junto com os CDs guardados na última gaveta da penteadeira. Acho que nunca havia conhecido uma pessoa tão obcecada por música além de mim.
     Quando raramente estou sozinho, tenho um quarto inteiro à minha disposição, onde eu posso ficar em paz sendo sedentário e ocioso. Nos fins de semana eu junto um dinheirinho, vou até a locadora do bairro e pego uma grande quantia de filmes claramente impróprios para minha idade.
     Meus favoritos eram os de horror intenso, com muitas mortes, aquele clima de suspense e sangue jorrando para todos os lados. Conseguia trancar a porta do quarto e passar horas em frente a tv, sem ninguém me incomodando. Quando sentia medo, deixava a porta entreaberta, mas isso era raro de acontecer, juro.
     Eu também gostava de ação, daquelas franquias famosas e de personagens icônicos. Aliás, meu cachorro não ganhou o nome de Yoda atoa.
    Sim, antes de pedir um videogame, no meu aniversário eu os convenci a adotar um cãozinho salsicha bastante travesso. De fato, ele é o rei da bagunça, mas desde que o vi naquela caixa de adoção eu soube que seríamos melhores amigos. Prometi que ia cuidar bem daquele carinha, pois meu pai jurou que lhe transformaria num cachorro-quente caso ele se tornasse um incômodo.
    Preciso ficar atento enquanto ele corre pelo quarto, já que da última vez esse doido andou vasculhando nas coisas da Lúcia, e rolou o maior escândalo. Ela definitivamente não gosta de baderna, tudo tem seu lugar e sua devida organização.
    Às vezes é difícil entender a cabeça da minha irmã, não estou exagerando. Nunca fomos o tipo de irmãos que brigavam o tempo todo ou coisa parecida. Na verdade, nos dávamos bem, até demais. Ter uns aninhos de diferença não afetou nossa relação e convívio.
    Maria Lúcia era uma jovem divertida, carinhosa, sempre inventava histórias legais e maneiras de escapar do tédio. Uma garota que não fugia dos problemas por maior que eles fossem. Bem diferente de mim.
    Porém, aos poucos ela foi mudando. Variações de humor ao longo do dia eram cada vez mais frequentes, tornando a nossa casa em um verdadeiro campo de guerra. As discussões entre ela e nossos pais foram surgindo sutilmente. Por trás daquela franjinha e de seus brincos de argola algo havia mudado.
    Com a ajuda do Yoda, certo dia encontrei uma fotografia escondida no quarto. Um garoto alto, de ombros largos e um cabelo que podia cobrir todo o seu rosto. Estava escrito "Rafael" com um coração no lado de trás, então talvez, a Lúcia estivesse apaixonada.

ᥲᥣᥱ́꧑ 𝚍᥆ ᥉᥆ᥣWhere stories live. Discover now