3. Linhagem

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Acordar é difícil. O mundo fora dos sonhos é muito vazio. As pessoas estão ali ao seu redor, mas ninguém te enxerga ou ouve enquanto você chora. Esse sempre foi o mundo de Godofredo: vazio, mesmo em uma multidão, e frio, mesmo em pleno verão.

Mas porque seu coração bate tão leve agora? Por que na escuridão dos sonos sem sonho agora uma luz brilhava no céu?

— Godô? – uma voz de menina chamava dessa luz.

As sombras iam se desfazendo ao redor de Godofredo.

— Está tudo bem, pode acordar já, Godô – disse a voz.

Por que ele não estava mais no escuro e sozinho? Por que não sentia mais frio?

***

Abrindo os olhos lentamente, Godofredo se viu deitado em um banco de material plástico, sua cabeça em um travesseiro quente e macio e por cima de seu rosto, o rosto de uma menina de olhos azuis o encarava.

— O que eu estou fazendo aqui? ... Eu estava no arco e... – disse Godofredo indo aos poucos se lembrando do momento que perdeu a consciência.

— Você desmaiou. Tem algo a ver com o ar de Arkana, ao menos foi o que o mestre disse. Aí ele te trouxe para cá e pra você não ficar deitado no banco duro eu deixei usar minhas pernas de travesseiro – explicou Anna.

Lentamente Godofredo entendeu que a sensação macia e quente sob a sua cabeça eram as pernas da menina. Então rapidamente se sentou com a coluna reta ficando com o rosto vermelho e as orelhas em chama

— O-obrigado! – agradeceu envergonhado olhando para baixo.

— Não precisa agradecer – respondeu Anna sem demonstrar nenhum tipo de reação. Godofredo não conseguia entender como ela conseguia fazer essas coisas e não sentir vergonha, como conseguia falar as coisas que falava com tanta naturalidade. Será que todas as meninas são assim? Ele nunca teve uma amiga antes e, aos poucos, começava a ter medo das mulheres e seus sentimentos misteriosos.

— Ah, que bom que acordou! Trouxe esse suco gelado para você. É laranja – disse o Corvo que se aproximava com uma garrafinha em mãos. Estavam no corredor ainda, poucos metros depois do arco. Aceitando o suco, Godofredo abriu a garrafa e tomou um longo gole.

— Não existe forma simples de te explicar o que somos – recomeçou o Corvo – A resposta curta é que somos magos, a mais precisa é que somos capazes de alterar a realidade usando o poder de nossa consciência através de fórmulas e atalhos criados por nossos predecessores. Quando atravessamos o arco de pedra viemos para Arkana, nosso mundo, saindo de Gaia, o mundo dos que não são magos.

— Ok – respondeu Godofredo tomando mais um gole do suco.

O Corvo então franziu o cenho e virou a cabeça um pouco para a esquerda, claramente intrigado. – Okay? E você acha isso que eu te falei aceitável? – questionou ele.

— Sei lá... na verdade não importa muito o que vocês são. Me tiraram de lá e me protegeram daquelas coisas. Então podem ser qualquer coisa que eu não vou me importar – respondeu Godofredo encarando a garrafa de suco em suas mãos – Eu sou um também? É por causa disso que as pessoas lá no orfanato não gostavam de mim? Por isso que eu via coisas que ninguém mais via?

— Bem, isso que viemos confirmar no Departamento de Linhagens. Todos podem manipular o mundo, mesmo os que não são considerados magos, inclusive alguns conseguem as coisas que você vê. O que muda é a facilidade e a qualidade dessa manipulação. Vou te dar um exemplo simples: uma pessoa joga um dado de seis lados e ele cai com o número seis para cima. Matematicamente, a chance de isso acontecer é uma em cada seis tentativas, então não é tão algo tão absurdo, mas se desejar muito que o seis caia para cima é possível alterar o resultado do dado ao jogá-lo – explicava o Corvo, quando deu de ombros e continuou – Não que vá cair o número seis, normalmente ao desejar demais se aplica uma pequena força sobre ele, sobre o vento ou até mesmo sobre o local que ele cairá. Isso na prática não muda obrigatoriamente o resultado para o desejado, mas faz acontecer algo que não deveria.

O Aprendiz do Corvo - Volume 1 (versão web)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora