1_ A adaga em marfim

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Parte I_ Crescente

O calor invade meu corpo como um parasita, obrigando-me a suar e me contorcer. Aos poucos, a fumaça acinzentada adentra meus pulmões retirando minhas últimas oportunidades de respirar com sucesso. A água que escapa pelos meus poros, não é suficiente para aliviar meu desconforto, nem o vento. Ambos, não são páreos para o mormaço de fogo que está ao meu redor e que em breve consumiria cada parte do meu corpo. Mesmo com os pulsos úmidos, não consigo me desvencilhar das cordas que amarram meus braços na mesa de pedra. Não posso me soltar, não posso fugir e também não posso acessar meus poderes. Olho mais uma vez para o céu, procurando a imagem da Lua, para encontrar esperança. Mas a fumaça que sobe constantemente tampa o céu, turva minha visão e faz meus olhos lacrimejarem. É nesse exato momento, que o desespero cai sobre minha alma e eu tenho certeza que não há forma nenhuma de fugir do meu destino. Duvido por um instante das lendas da minha própria tribo, da minha natureza divina. Enquanto o faço, dezenas de pessoas se juntam ao redor da fogueira que está prestes a me queimar e murmuram coisas que não entendo, fazendo uma prece. Entre eles, uma anciã caminha na minha direção contornando o fogo e se aproxima do meu corpo. Ela podia cortar as cordas que me prendem, oferecer agua para minha garganta que queima ou apagar a fogueira. Contudo, ao invés disso ela ergue uma adaga perolada elegante e, rapidamente, corta meu pescoço. Sinto sangue escapar da minha pele aos montes e vejo gotículas dele manchando as vestes da anciã e as minhas. Em poucos segundos minha vida se esvai.

Desperto sobre a clareira, dentro da tundra selvagem, já quase na divisa dos muros. Meu corpo está pegajoso, anormalmente, como se de repente eu tivesse transbordado meu interior enquanto dormira. A cena do pesadelo, vívida, me faz levar a mão direita até minha própria garganta, a consolando. Todos os meus pesadelos se tornavam realidade, mais cedo ou mais tarde. Não sabia ao certo se fazia parte da grande gama de dons que eu possuía, ou se simplesmente as últimas três vezes foram coincidência, mas eu não tinha outra escolha a não ser me recordar e temer. Me preparar para o pior. Para o dia em que aparentemente seria o dia da minha morte.

Será que não tinha uma previsão melhor para vir no dia do meu aniversário?

Arfo, irritada. Percebo que os lobos ao meu redor estavam imóveis, tensos, me encarando. Eles sabiam que eu tinha sentido algo sombrio chegando. Provavelmente sentiam também. Seus instintos eram melhores que os meus, eu tinha certeza. Ada, a mãe e líder dos membros da matilha, encolhe seu pequeno rabo peludo a medida que eu me ponho e pé. Isso não era um bom sinal. Lobos só recolhiam seus rabos quando estavam nervosos. Por um instante, penso em me deitar outra vez sobre o gramado da Tundra, mas ao olhar para o céu, noto que o sol se esconderia em breve. Eu não podia faltar as festividades daquela noite. Afinal, não é educado o convidado de honra faltar sua própria celebração de aniversário.

Começo a caminhar, descalça, pela trilha de volta ao palácio, mesmo que a contra gosto. A verdade é que eu não gostava desse dia. Sabia que para a tribo de Kimalah ele era celebrado com louvor e alegria, porque foi o dia do cumprir da profecia. Foi o dia que eles receberam a salvadora tão prometida, que lideraria eles a um novo mundo de paz, prosperidade e segurança. Eu era como um tesouro, guardado a sete andares, atrás de muros enormes e de um exército bem treinado. Por isso, todos os habitantes de Kimalah me mantiveram segura por longos anos, celebrando minha existência. Mesmo assim, para mim, aquele também era o dia do massacre de Abdalah, o dia em que dezenas de pessoas, inclusive minha mãe, foram massacradas, torturadas e sangraram até a morte por minha causa.

Ada emite um breve latido e escuto o som do quebrar de galhos a minha direita. Endireito minha postura e ergo minha máscara de indiferença suspeitando que havia alguém se aproximando pela trilha. Sei que não é inimigo, porque a matilha em volta de mim permanece tranquila, na minha retaguarda. Vejo então o despontar da armadura prateada e do cabelo loiro escuro e sei de quem se trata. Athos, detém seus passos ao me enxergar e, pigarreando um segundo antes, curva seu corpo em reverência:

Tocada pelo SolWhere stories live. Discover now