Prólogo

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As águas densas do rio escorriam majestosamente pelos morros verdejantes de uma primavera recém-nascida

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As águas densas do rio escorriam majestosamente pelos morros verdejantes de uma primavera recém-nascida. O som líquido e relaxante contrastava com o canto de várias espécies de pássaros que se reuniam sobrevoando o grande Vale Caligo todos os anos na época de reprodução. A brisa matutina aquecida pelo amigável sol de poucas horas do dia carregou o conjunto de cheiros floríferos até a janela da grande torre onde se encontravam os aposentos reais.

O aroma da estação, no entanto, não veio trazendo boas sensações. Aquela fragrância apenas serviu para acentuar a dor de cabeça latejante que destruiu o sono tranquilo do príncipe. Entre os lençóis sedosos de sua confortável cama, as memórias da noite regada a orgias e álcool retornaram à mente de Taehyung em forma de ressaca. Apesar da dor, ele se espreguiçou sorrindo. Todas as horas gastas com o próprio prazer eram valiosas, mesmo que significasse ter que enfrentar certo desconforto matutino.

O fato era que seus momentos de lazer se tornavam cada vez mais escassos à medida que se aproximava o fatídico dia em que teria que aceitar a coroa e tornar-se oficialmente Rei de Hécabe. Sempre que esse pensamento ressurgia para atormentá-lo, tinha vontade de subir até a torre mais alta do castelo e se atirar para uma morte teatral e inesquecível.

Não que ele odiasse a ideia de ser rei, na verdade tinha expectativas excitantes sobre o poder que tomaria. Por isso morrer não era a solução exata, precisava encontrar um caminho mais viável e igualmente impactante. Haviam esperanças grandiosas sobre ele depois do reinado glorioso de seu pai. Era, portanto, sua missão continuar sendo um governante tão excepcional quanto o antecessor havia sido, pela honra e memória do clã, mas como? Sequer conseguia cuidar de si mesmo, assumir a responsabilidade pela vida de pessoas que nem conhecia parecia mais complicado do que julgava ser capaz.

Pelo menos teria uma coroa pesada na cabeça, um trono confortável, centenas de servos e muita importância. Apenas isso era suficiente para tranquilizá-lo.

Enquanto esperava que alguma das criadas lhe trouxesse algo para diminuir a dor que sentia, o rapaz se levantou da cama e enrolou o corpo nu no pesado roupão de tecido nobre. Tocou os pés cuidadosamente no chão frio e caminhou até a grande janela para abrir as cortinas, sendo atingido por uma claridade dolorosamente irritante. Ao longe podia enxergar as montanhas cercadas de nuvens, os muros altos e, mais abaixo, o reino. Tudo aquilo era seu. Cada folha, casa pássaro, cada indivíduo que estivesse dentro daquele horizonte lhe pertencia. Alegrou-se com a imagem, ainda que se sentisse amedrontado.

Seus olhos caíram para o jardim do castelo, onde viu entrar um plebeu maltrapilho e medíocre como todos os outros. Sua atenção foi desviada quando um besouro verde pousou no parapeito, sendo imediatamente recepcionado por um tapa que espatifou o corpinho em um monte de gosma. Enojado, limpou as mãos no tecido e virou as costas para sair do quarto em busca de um pouco de brisa fresca, para aliviar o incômodo que sentia.

Passou pelos corredores longos, pelos quadros de pessoas mortas, pelos lustres gigantes, tapetes de estampas diversas, desceu pelas escadas de mármore, atravessou cumprimentos formais dos criados, tudo isso para chegar ao local de cargas que dava acesso a um dos seus lugares favoritos do jardim. Assim que desceu do último degrau e atravessou a porta, deparou-se com uma imagem que o fez esquecer momentaneamente da enxaqueca e do asco com a gosma do besouro.

De costas, o menino que viu entrar pelo portão da frente estava enfiando a mão em uma das cestas de pão e escondendo nos bolsos da calça.

— O que pensa que está fazendo? — Sua voz ecoou pelas paredes de pedra, assustando o plebeu que se virou com olhos arregalados.

— Eu... — O estranho começou dizer, mas se embaralhou nas próprias palavras e por fim desistiu. Recuperando-se do susto, recobrou os bons modos e abaixou o torso em sinal de respeito. — Sinto muito. Não sou nenhum ladrão, senhor. Apenas fui guiado pelos instintos da fome.

Ainda com o rosto abaixado em submissão, um ronco na barriga do rapaz confirmou que realmente estava faminto.

— Quem rouba é ladrão, não importam as necessidades — Taehyung respondeu, achando a situação bastante cômica. — Tudo isso pertence ao príncipe. Se você rouba ao príncipe, então é um traidor.

— Não diga nada disso ao príncipe, eu imploro. — Em um ato de desespero, abaixou ainda mais o corpo, flexionando a perna e apoiando um joelho no chão. — Foi uma atitude impensada, mas não sou um traidor.

Taehyung precisou conter a vontade de rir. Aquele plebeu nem sequer sabia que estava diante do príncipe e se ajoelhava no chão por um mísero pedaço de pão. Poderia revelar a ele sua verdadeira identidade e provavelmente assistiria ao garoto se deitar diante de seus pés, mas não faria. Em breve ele saberia, de qualquer forma.

— Levante-se — ditou de forma autoritária e o garoto obedeceu, mantendo a cabeça sempre abaixada. — Olhe para mim enquanto estiver falando com você.

Ele levantou o rosto, permitindo que pudesse observar suas feições pela primeira vez. Era jovem, carregava os traços de um menino que acabou de se tornar homem, olhos grandes e escuros, lábios delicados e amedrontados. Parecia um passarinho que acabava de cair do ninho e não sabia voar. Poderia ser apenas um rapaz como qualquer outro daquele reino, mas havia algo nele que não tinha como ser colocado em palavras e que deixou o príncipe fascinado de uma forma muito particular.

— Como se chama? — questionou por praxe, mas também porque tinha curiosidade em saber para fins mais pessoais.

— Jungkook.

— Entrou aqui para roubar?

— Não. Eu sou filho de Jasper, o boticário. Apenas vim trazer uma poção que foi encomendada para o príncipe — disse e fez um sinal com a cabeça indicando o embrulho que havia sido deixado em uma mesa próxima.

— Certo, Jungkook, eu deixo você ir... Desde que devolva o pão. — Sinalizou para o pedaço que o menino tentava esconder no bolso.

Jungkook prontamente retirou o que tinha pego e entregou a ele sem pestanejar, embora estivesse com a boca salivando pela vontade de comer.

— Obrigado. Prometo nunca mais roubar.

— Agora vá! — ordenou.

— Ainda não me pagaram pelo frasco, senhor.

— Vai cobrar por um serviço prestado ao futuro rei? Deveria oferecer por boa vontade.

— Eu preciso das moedas — insistiu. O pagamento seria convertido na próxima refeição da família e se chegasse em casa de mãos vazias, a culpa do jejum seria toda sua.

— Meus bolsos estão vazios, sinto muito — Taehyung deu de ombros. — Vá logo.

Relutante, o menino se viu obrigado a obedecer e ir embora. O príncipe ficou observando ele se afastar, ainda refletindo sobre a aura cativante que ele emanava. Se fosse nobre, certamente teria interesse em mantê-lo como amante, mas não passava de um plebeu. Olhou para o pedaço de pão, encontrou as marcas dos dedos sujos e sentiu nojo. Jogou aquele resto para o canto onde algum dos ratos que trilhava o interior de pedra do castelo poderia comer.

— Vossa Alteza? Está aí? — A voz de Namjoon se fez presente atrás de si e logo sentiu a presença do conselheiro a alguns centímetros de distância. — Precisa se arrumar. Os convidados chegaram.



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Oi!

Diferente de tudo  que eu já escrevi, Caligo vem aí com uma narrativa leve e fantasiosa, ambientada em um contexto medieval. Espero muito que tenham gostado dessa pequena amostra :)

Toda a minha gratidão à wams44 por ser uma beta maravilhosa e me ajudar a ser uma escritora melhor ♡

CaligoWhere stories live. Discover now