Parte II - Renaissance

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Sua cabeça doía como se tivesse batido repetidas vezes contra alguma parede de concreto, cada célula do seu corpo carregava resquícios de uma dor que já não era mais aguda, mas ainda incomodava para mover os membros. Peter abriu devagar seus olhos, a mínima fresta de luz que cruzava a pálpebra queimava mesmo que a não fossem raios de sol que estivessem banhando o ambiente. Foi sofrido, mas conseguiu enfim ter uma visão de onde estava conforme os borrões ganhavam formas nítidas ao passo que também começava a reconhecer aromas e sons – podia ouvir a movimentação urbana fora do armazém onde estava – e a primeira sensação que veio foi o frio típico do ar matinal de Nárnia. Peter passou a mão no rosto e então veio o forte cheiro de sangue, a sensação morna na pele, junto do desespero que tomou sua mente ao associar que aquele cheiro vinha de si mesmo, mas não era seu sangue.

Pevensie olhou os braços e viu que estava ensanguentado, bastou erguer um pouco sua cabeça para perceber que estava completamente nu, e tentou levantar para ver o que diabos tinha acontecido, mas só piorou quando na sua tentativa de ficar em pé sentiu algo macio embaixo de si e se viu rodeado de corpos mutilados. O rapaz não tinha voz para gritar, seu corpo ainda parecia não responder completamente aos comandos da mente, tudo o que conseguiu fazer foi se arrastar para fora da pilha de corpos e escorar na parede para conseguir ficar em pé, somente então conseguiu observar melhor a carnificina: corpos devorados parcialmente, era um claro ataque de lobisomem aquilo, devia ter em torno de quinze mortos entre humanos e animais falantes, o excesso de cinzas ao seu redor só indicava que provavelmente vampiros estiveram ali e também foram mortos.

Não podia ser ele. Peter não lembrava de nada da noite anterior, mas tinha certeza de que não cometeu aquela atrocidade, era impossível. Sentiu-se enjoado, seu corpo precisava colocar algo pra fora e começou a fazer movimentos involuntários para vomitar, o rapaz não fez resistência alguma e tentou acabar logo com aquilo, mas o que saiu de sua boca foi nada além de uma orelha humana. Ele agarrou o próprio cabelo e agachou no chão, apertou os olhos e começou a gritar de maneira histérica, desejando apenas que aquilo fosse um pesadelo e acabasse logo.

Mas nada daquilo era falso. Cada segundo foi real naquele dia.

「• • •」

Os olhos abriram subitamente, Peter estava ofegando e trêmulo enquanto a água fria caía sobre seu corpo por tempo o bastante para não causar arrepios mais. Ele olhou para as próprias mãos em busca das mesmas manchas de sangue, mas estava limpo, apenas tremia como um cão assustado. Conformado que tinha apenas mergulhado em outro devaneio, o loiro desligou o chuveiro e saiu do banheiro após enrolar a toalha na cintura.

Duzentos anos. Foram duzentos anos de paz em Nárnia, foi tempo o suficiente para o episódio de Krampus, Shapeshifter e Copycat se tornarem apenas um conto histórico para uma geração que não viveu aquele terror. Duzentos longos anos para Peter, Lucy e, principalmente, Caspian, que sofreram o alto preço de trazer essa gloriosa paz ao mundo mágico. Naquela época, enquanto todos saíam às ruas para comemorarem que os notórios serial killers foram derrotados e que Jadis estava morta novamente, Lucy e Peter choraram no túmulo dos irmãos que perderam, Caspian abraçou uma melancolia que o fez definhar até somente sobrar sua mente ainda funcionando e ser forçado a ter doses mínimas de sangue para não chegar ao ponto de virar literalmente apenas pele e ossos.

Peter caminhou até o guarda-roupa, sempre abria com uma patética esperança de ver a passagem de volta ao seu mundo e que bastava atravessar para tudo voltar a ser como antes, quando tornar-se o homem da casa enquanto seu pai estava na guerra era a maior preocupação que poderia ter na vida.

"Agora parece algo tão simples", pensou com um sorriso melancólico.

Ele pegou uma jaqueta que pertenceu ao seu irmão, dentro do bolso dela ainda tinha a carta que Edmund deixou antes de voltar para a mansão na noite em que Peter foi transformado. Tinha o hábito de reler a carta, era uma forma de sentir que ainda tinha Eddie por perto, um pequeno pedaço de sua alma por assim dizer. Dava uma falsa sensação de que não fazia tanto tempo assim que ele se foi.

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