Domínio do Medo.

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Não sei ao certo de como aconteceu, mas me lembro do fedor. Mofo e podridão, espalhado pelas paredes e impregnado no chão de madeira que se ensopava de tantos líquidos diferentes que não havia mais distinção. Eu sabia o que eles eram porque eu os vi. Jogados no canto do meu quarto desde que eu cheguei, acompanhei as fases e aprendi com elas. Tentei mentalizar que eu seria mais uma naquela pilha sem vida, e consegui. Nunca vi seus rostos, mas eles me falavam que se eu fizesse alguma coisa que não deveria, seria punida por isso. Que não faria diferença porque eu era apenas mais uma criança, mais um pequeno ser sem importância para a humanidade. O medo é inevitável, mas meu avô me ensinou que devemos superá-lo, ou ele nos consumirá e não teremos força para lutar. Eu nunca a tive, sou honesta. Nunca vi escapatória, e mesmo hoje, fora daquela aldeia erudita, continuo não a encontrando.

Eu via os livros nas prateleiras quando passava pelos corredores, olhando para dentro das portas entreabertas. Sempre usavam grandes tecidos negros que cobriam suas faces e se escondiam na escuridão, mas era uma tática inteligente. Haviam páginas rasgadas, objetos que eu nunca havia visto antes e algum líquido vermelho que sempre julguei ser sangue. A dúvida se tornou minha certeza quando me deitaram naquela mesa pela primeira vez. Disseram que era apenas uma brincadeira, e aquelas palavras estranhas que eles diziam com a entoação de uma orquestra me fizeram rir inicialmente. Depois disso, o riso de tornou em gritos. Lembro apenas de flashes, quando eles prenderam minhas mãos e meus pés para eu não fugir. Ainda consigo sentir o ardor dos cortes, da dor quando rasgaram o meu interior sem a permissão devida, de tudo o que me fizeram. Falaram que era tudo para eu obter a glória do seu Senhor quando crescesse, para que quando eu abandonasse o mundo minha alma ir para um lugar seguro onde ninguém me faria qualquer mal, pois estava sobre sua proteção.

No dia seguinte, não houve comida nem água. Falaram que eu precisava ganhar resistência para o Senhor me receber. Eu não podia falar nada, e quando ousei falar, fui açoitada com um couro vezes o suficiente para esfolar minha pele e deixar o meu sangue escorrer coxas abaixo. Eu não sei o que estava dentro de mim, mas doía, tal como não sei o que me fizeram para eu ficar tão magra. Havia melhorias nos seus planos devido ao tempo que eu sobrevivi naquele massacre lento, uma chacina dolorosa e impiedosa que questionava a existência da palavra crueldade. Aquilo era muito para se encaixar naquela palavra. A energia que me consumia nos rituais que eles realizavam durante a noite ficava cada vez mais forte, eu queria ceder. Mas eu não podia. O medo não iria ganhar naquele dia, e eu sabia que um dia eu ia ter que tentar escapar. O único jeito que eu encontrei foi converter a fé dos homens no pesadelo das suas almas e quebra-las.

Aquele homem que entrou dentro de mim era o prodígio, líder e maior orador daquela seita. O único fiel que, em décadas, conseguiu contacto com o diabo e se tornou seu aprendiz. Todo o poder era centrado nele, e era, por isso, a fonte de todo o medo. Eu não sei o que ele plantou, mas algo crescia. Eu venci isso e consegui perder o que ocupou meu estômago nos primeiros meses. Eu era o prodígio infantil daquele lugar, a única esperança para a conexão que todos queriam manter com o Poderoso. Mesmo assim, depois de conseguir expulsar aquela entidade do meu corpo, fui punida injustamente. Aparentemente, o desejo daqueles fiéis era manter o Seu filho no meu ventre, pois ele iria sobreviver, diferente de todos os outros que foram implantados. Durante a punição, me vi revirando a minha própria pele pela força da minha voz. A imensidão de dor era como mergulhar em um mar de lâminas cegas, rasgando a pele esfolada e a tornando em fragmentos soltos que gritam por independência.

De fato, aos poucos o que parecia fraqueza aos outros criou uma força interior que se escondia por trás dos ossos anémicos. Algo crescia e se alimentava do ódio e dos remorsos, e por mais que eu estivesse afogada em águas negras, me levava para mais fundo ainda. Mas essa escuridão era a ascensão que me fez atingir o mais alto dos baixos pontos. Minha pele perdeu a cor, eu sei disso porque mesmo com os olhos fechados por ter desmaiado ele sussurrou no meu ouvido. Ele cantou que eu iria me vingar de todos na mais doce das macabras melodias, e quando planejaram descartar meu corpo como uma folha, Ele me fez voltar à terra. A cegueira dominou minha vista e o que dela surtiu foi a visão distorcida do mundo. Talvez essa realmente fosse a verdadeira face deste mundo sem força, mas ao invés de chamas, liberava o caos. O caos que os consumiu a todos, um por um, dos jeitos que me haviam dominado a mim.

O que sei daquele último dia também não é muita coisa. Mas eu sei que hoje vivo isolada em uma cabana perto das antigas instalações da seita. Ainda visito aquele lugar às vezes, mas o que sinto não passa de rancor. Após subir aos céus flamejantes desci à terra como sua reencarnação. Poucos sabem de mim, poucos sabem onde estou e os que sabem, foram guiados a uma visita a esses céus avermelhados. O que eu queria era viver. Hoje, essa decisão dói mais que qualquer outra coisa, mas eu não posso falar isso. Ele escuta, Ele manda, Ele sabe de tudo. É Ele que me controla, e é Ele o meu dono. O que eu sou, minha essência. O resto, o que um dia eu fui sozinha, está preso naquele pequeno coelho azul que minha mãe me deu no último aniversário que realmente vivi. Me pergunto se eles ainda se lembram de mim e se algum dia me procuraram, mas nessas condições, nada disso importa. Prefiro que eles aceitem a realidade de uma filha morta a encarar o monstro que sou.

Devaneios de uma Alma PerdidaWhere stories live. Discover now