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Caminhar, caminhar, caminhar.

Pensando eu conseguia focar e focando eu conseguia fazer. Caminhe, não pare, não pare.

Mas não dava, eu tinha que parar pelo menos um pouco para respirar. Até mesmo respirar doía, era como se meus pulmões quisessem expulsar minha caixa torácica do lugar para terem mais espaço para si. O ar nunca pareceu tão insuficiente e ardente. Caminhei mais dez passos antes de olhar para trás; eu não tinha me permitido olhar para trás nem uma vez, eu não queria que se repetisse.

Sinto o gosto do meu sangue na minha boca e o cheiro metálico, ácido, que me deixa enjoado. Sei que tem sangue na minha boca e abaixo dela, sinto os cortes de dentro também, ardendo toda vez que passo a língua por eles. Sinto o cheiro de sangue porque minha camisa está quase totalmente encharcada com ele, e eu sentia entre os dedos, grudento e quente. Mas não tão quente quanto minutos atrás. Ousei olhar para minhas mãos. Minha barriga inteira deu um nó, meus intestinos travaram na hora. Eram câimbras.

Continuo andando até ver a minha casa. Tento suspirar mas isso também doí. Faço uma lista enquanto me arrasto.

Meu ombro direito dói, foi onde Zaqueu me aperto com força demais para que eu ficasse de joelhos; naquele momento eu senti que ele queria deslocar meu ombro e não duvido que poderia ter feito isso sem nem mesmo perceber.

Minhas costelas doem porque Valter deu dois chutes.

Minhas mãos estão cobertas de sangue. Minha testa também e acho que no queixo. Enfim, eu estava coberto de sangue e sei que não só meu. Anderson fez com que eu sentisse o gosto do sangue dele antes do meu colocando dois dedos na minha boca. Eu podia tê-lo mordido, tenho consciência disso, mas travei e não consegui. Quais as consequências de uma mordida depois de uma pedrada? Mais chutes ou um dente quebrado? Eu não queria descobrir.

Ah, quase me esqueci, Anderson também me socou no tronco por isso quase não consigo respirar. Em que número da lista eu estava? Não faço a menor ideia.

Só penso em chegar em casa e tirar as roupas no banheiro, deixar que façam uma pilha no banheiro, ligar o chuveiro e me limpar até meus dedos ficarem enrugados, até eu não sentir mais o cheiro ácido e vermelho, até eu esquecer um pouco que... tudo. Esquecer um pouco de tudo.

Se eu conseguir escrever, ótimo. Talvez eu nunca mais volte para a escola depois disso. Seria muito fácil, sem meus pais por perto, Anderson e os outros fazerem o que quiserem comigo desde socos a piadas pelo caminho de volta.

A voz dele perturba meus pensamentos como uma garra afiada e podre.

E também teve o negócio do seu irmão... e agora seu namorado.

Era difícil pensar só nisso quando escutei coisas como: Segura ele porra!, vou matar você cara de sapo, porque você não grita? Grite!

Então meus braços eram agarrados, unhas enterrando e deixando marcas vermelhas, gritos, eu não era mais do que um boneco de pano sendo dividido por três crianças teimosas a qualquer custo. O que se passava pela minha cabeça? Quando joguei a pedra pensei: idiota. Quando a pedra o acertou, pensei: desculpe, merda, merda. Quando fui agarrado pensei: vou morrer agora, meu tempo acabou.

Cheguei à porta de casa, finalmente.

Procurei a chave nos bolsos e percebi que tremia. Certo, certo... Só... Tenha calma. Quando encaixei a chave e estava prestes a entrar eu ouvi o motor de um carro e estava chegando cada vez mais perto.

Meus pais!

Olhei para a rua, rápido demais. Um sorriso enorme se formando no rosto e um pedido novo de desculpas entalado na garganta em algum lugar entre o medo de falar e a vontade de gritar. Então isso se perdeu também quando percebi que era a viatura de Mariano, ele estava saindo do carro em frente a própria casa. Não queria que ele me visse assim, não queria preocupa-lo. Ele já deve saber da ausência dos meus pais e não quero que sinta pena de mim e...

Quando seus olhos pousaram em mim eu soube que ele não sentia pena de mim. Parecia não me conhecer, nem se quer parecia me conhecer. Estava olhando para mim mas ao mesmo tempo não estava. Vi como seu rosto estava retorcido em uma careta e pode ter sido minha imaginação, mas vi ele piscar diversas vezes, voltando à realidade, saindo dos confins dos seus pensamentos já lá quais fossem.

Então me viu, finalmente. Então pareceu realmente preocupado. Mas eu não ligava. Juntei as peças; a fala de Anderson, a espera, a ausência da moto, o rosto de Mariano. Corri. Não para dentro de casa como queria, minhas pernas receberam um comando que não veio do meu cérebro, veio de algum lugar mais complexo e profundo, dolorido também.

— Samuel... O que você... — Ele não conseguia falar. Não conseguia parar os olhos em um só canto. Era em mim, na rua, na casa. Ele estava perdido.

— Cadê ele? — Pergunto afobado.

— Ele...

— Cadê ele? — Gritei quando sua resposta voltou para dentro. — Onde ele está? Saulo!

— Quem...

— Seu filho! Onde está Saulo? Me responde!

Tenha respeito. —Uma parte minha alertou, submissa. Outar parte gritou: QUE SE DANE O RESPEITO.

Fui puxado para um abraço antes que percebesse e pudesse desviar. Recebi um abraço doloroso demais para ter outro em um curto espaço de tempo. Mas não consegui sair dos braços enormes de Mariano, ele me cobria todo com o corpo dele e não se importava se eu estava sujo, manchando seu uniforme. Senti meu corpo tremer. Não. Era o corpo dele que estava tremendo, soluçando. Um homem enorme estava chorando na minha cabeça, um homem enorme agarra meu corpo com força enquanto eu fico parado, me sentindo longe.

Não sei quanto tempo ficamos assim, o tempo nem mesmo pareceu mudar sequer um minuto, tudo continuava igual.

Mas eu sabia que a partir de hoje nada mais seria igual. 

Pontos Prateados em um Céu Azul Escuro (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora