Pausa (Parte Um)

144 21 60
                                    

A escadaria já estava alagada. Mal entramos e a água batia no pescoço. As pétalas flutuando e brilhando. Aquela sensação de torpor, de sono. De ser levado por uma maré. Me deixei flutuar naquela água, junto com as pétalas de jacarandá, a única fonte de luz. Estava afundando na escuridão, as pétalas brilhando como estrelas acima de mim, e um vazio tão profundo abaixo que fazia meu coração se apertar.

O som de uma gaita de foles entrava pelos meus ouvidos, longínquo, a música triste abafada pela água, chegando até mim como o canto distante de uma sereia. Tinha também uma voz. Primeiro, eu não entendi o que estava cantando. Parecia uma língua estrangeira difícil de compreender. Mas, à medida que eu afundava, as palavras ficavam mais claras e entravam traduzidas em minha mente.

Brilhante e poderoso,

Como as estrelas no céu

Vou esperar você voltar

Até o sol se apagar

Pelo Tempo minha voz ecoar

Você virá me salvar se eu chamar?

A voz feminina cantou com tristeza e foi respondida por uma masculina grave e rancorosa.

Fria e branca, tal como a Lua no céu

Meu coração arde por não poder voltar

Me espere até passar o frio

Pelo Tempo eu vou navegar

Ouvi o seu lamento

Voltarei para te salvar

Meus olhos pesados começaram a se fechar. Lembro de reconhecer a última voz e murmurar em minha mente.

Eu vou matar você...

Pisquei várias vezes, tentando me acostumar com a claridade. Parecia que o sol estava milhares de vezes mais brilhante que o habitual .

Ótimo. Vou acordar de novo no mesmo dia, com sangue empastado na cara e a Renata espancando minha porta. Ô, lasqueira!

Não lembrava de ter um toca discos no meu quarto, mas, antes de minha visão desembaçar, ouvi o som de um disco sendo arranhado pela agulha de uma vitrola.

Ok. As coisas já mudaram de maneira significativa. Vamos lá, retinas, façam seu trabalho! Estou ficando curioso.

Aquela luz era opressora. Mas aos poucos foi me deixando ver o que estava à minha volta. O porquê daquele cheiro de madeira e resina. E de ovos com bacon. E aquele arzinho frio entrando por alguma fresta nas laterais do meu quarto.

Bom, não era o meu quarto.

Acordei com o rosto em um tapete de pele de algum animal desconhecido, mas que tinha cheiro de amaciante e meias novas. Estava sobre um assoalho muito limpo de pinho escuro e brilhante, com um bom verniz e bem conservado com um enceramento esmerado. Era muito satisfatório aquele chão. Tão limpo! A música que tocava era Como Nossos Pais. Estava em um volume agradável, que não me feria os ouvidos.

Levantei devagar, apoiando os cotovelos no chão. Acima de mim tinha uma poltrona cinza coberta com uma manta bordada com motivos indígenas americanos. Calliope estava sentada nela, dormindo, coberta por uma mantinha de lã. Do outro lado havia uma poltrona vermelha com Suzana depositada nela, coberta com um lençol branco.

Ouvi o barulho de pratos, panelas e talheres batendo. Estávamos em uma espécie de sala de estar. Havia quadros nas paredes, cenas campestres, um rifle pendurado acima da poltrona onde Suzana estava. Uma mesinha de centro bem ao meu lado, sobre o tapete,uma estante com muitos livros e uma pequena adega com algumas bebidas. Ao lado da estante, uma porta, de onde procedia o barulho dos equipamentos culinários. Na parede oposta, havia outra porta, que devia dar para o lado de fora. Em cima do capacho, um grande gato branco e gordo se remexia e espreguiçava.

Uma Rapsódia Do TempoOpowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz