4. Memória

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“E é nisto que se resume o sofrimento:
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!”
— Cecília Meireles

Ana caminhou pelo convés superior até a ponta da prôa, onde descansou os braços sobre o amadeirado da borda. Aquela noite parecia calma, e após terem feito a última checagem em todas as cordas, e no navio em geral, não havia muito o que se fazer.

Ela olhou para a linha do horizonte, onde a densa camada de estrelas iluminava o mar, que agora se agitava de forma melancólica, seguindo padrões de movimento quase sincronizados.

Depois de um longo tempo observando a cena, desviou o olhar de volta a embarcação, mas a maioria dos tripulantes parecia já estar no interior do navio.

Começou então a caminhar em direção as escadas, mas parou ao notar uma silhueta recostada no timão. Ele também pareceu notar seu movimento, pois ergueu um pouco mais o corpo e ela reconheceu Callahan. Ocupava o posto do timoneiro, como acontecia com bastante frequência.

Ambos permaneceram imóveis, até o momento no qual ele quebrou o silêncio com uma voz rouca, alta apenas o suficiente pra que ela escutasse.

— Suba até aqui!

Ela o encarou por mais um instante, depois seguiu calmamente até a escada. O vento lá em cima soprava ainda mais forte, agitando seus cabelos e lhe causando calafrios.

Parou ao lado do capitão e olhou na mesma direção que ele parecia fitar. Seguiram-se mais alguns segundos em silêncio, até o momento em que ele se afastou um passo, oferecendo a direção do navio a ela.

— Não... Eu nem saberia como. – disse constrangida.

— Não precisa saber muita coisa, vamos! — ele retrucou com a voz branda.

Ana tocou então o arco do leme de forma amadora e hesitante enquanto Vítor permaneceu segurando-o com apenas uma mão. Em seguida a olhou com um sorriso irônico ao dizer:

— Segure-o com mais firmeza! Você precisa impor a sua autoridade.

Ela não conseguiu reprimir um sorriso incrédulo, mas apertou as mãos com mais firmeza sobre os entalhes de madeira cuidadosamente polida.

— Fala como se o navio fosse um ser pensante.

— Não diga coisas assim. Pode ofendê-lo.

Ana o fitou, notando que ele não sorria, mas seus olhos carregavam o mesmo divertimento que ela já havia visto em outras ocasiões. Enquanto com o polegar, ele acariciava a madeira de forma quase inconsciente, mas o carinho do gesto era bastante claro. Ela sabia que ele não falava aquelas palavras a sério, mas não havia dúvidas de que aquela embarcação significava muito para ele.

Ana concentrou sua atenção novamente no timão a sua frente, e não deixou de perceber quando ele retirou a própria mão, deixando que ela assumisse o controle sozinha. Sentiu uma sensação estranha percorrer seu corpo. Sabendo que aquele navio enorme estava agora sob o domínio de suas mãos, era assustador e maravilhoso, na mesma proporção.

O vento açoitava o mastro, balançando as cordas e as velas, quase tão negras quanto a bandeira, que se destacava contra a noite apenas pelo símbolo, muito rústico, mas também muito característico.

Ao voltar seu olhar para Callahan, viu que ele a observava, trazendo no rosto um pequeno sorriso.

— O que foi? – ela perguntou hesitante, e ele voltou a olhar o mar antes de responder.

— Você se parece muito com o seu pai.

— Você acha? – indagou em voz baixa, quase para si mesma, mas continuou um pouco mais firme — Em quê acha que me assemelho a ele?

— Sem dúvidas na teimosia. – falou sem precisar pensar muito, e ela sorriu involuntariamente, mesmo ainda conservando uma expressão melancólica.

— Mas também na força. – continuou Vítor, agora mais sério — E em seus olhos.

Disse a última frase em voz mais suave, e Ana o encarou um pouco surpresa, vendo que ele agora a fitava diretamente.

Não que fosse a primeira vez que alguém comentava sobre essa semelhança, sem dúvidas ambos tinham olhares muito característicos, com suas íris quase negras, delineadas por longos cílios e sobrancelhas marcantes.

Ela apenas não esperava este comentário vindo dele. Callahan manteve seus olhos fixos nos dela por mais alguns instantes, mas foi o primeiro a quebrar o contato, pegando a seguir uma garrafa pequena de bebida que estava ali próximo e tomando um longo gole.

O silêncio que se seguiu não chegava a ser desconfortável, somente quebrado pelo suave som das ondas e de seus próprios pensamentos. Até que Ana devolveu a ele o timão, enquanto falava calmamente.

— Nunca me contou como o conheceu.

— Foi há alguns anos. – falou, enquanto ponderava suas palavras — Uma época em que eu costumava tomar atitudes imprudentes.

— Não o faz mais?

— Talvez. Mas gosto de acreditar que aperfeiçoei a capacidade de escapar impune.

Ana o encarou a tempo de ver um sorriso arteiro mal disfarçado, logo substituído por um semblante neutro.

— Em uma dessas... aventuras, calculei mal minha escolha de caminhos, e de alguma forma, acabei cercado. E sabia que não seria a prisão o meu destino, caso fosse capturado.

Ela agora o escutava atenta, sentada sobre um pequeno barril enquanto, inconscientemente, observava os seus movimentos.

— Escalei então um telhado. – continuou, ainda olhando à frente — E quando desci mais a frente... Bem... Aterrissei sobre ele.

— Foi você?! – disse ela surpresa, ao lembrar-se vagamente de uma história muito confusa que ouviu de seu pai.

Ela tinha apenas sete anos na época, mas histórias sobre homens que caem do céu sobre os transeuntes não se ouvem todos os dias. Vítor lhe lançou um sorriso mais sincero desta vez, ao que ela retribuiu.

— Acreditei que ele me entregaria naquele momento. Era óbvio, por sua expressão ao me encarar, que ele sabia que eu era um pirata - embora um muito magricela na época - mas ao invés disso, ele me ajudou.

— Sem ao menos perguntar alguma coisa?

— Não lembro exatamente suas palavras, mas depois de uma confusa e apressada conversa, falou algo sobre energia positiva e pediu que o seguisse.

Ana sorriu, conhecendo bem a capacidade que seu pai possuía para sentir as pessoas. Ele era capaz de ver além de qualquer aparência, e ler através de sua aura.

— Depois daquele dia, cheguei a encontrá-lo novamente em raras ocasiões. Assim o conheci um pouco mais, bem como ouvi sobre você e a caravana.

Quando Ana não fez mais nenhum comentário ou pergunta, ele a observou, notando que agora ela parecia distante em seus pensamentos, então pegou novamente a garrafa e a estendeu a sua frente.

— Uma história por outra história. – disse assim que ela o fitou.

Ela o estudou brevemente, mas acabou sorrindo ligeiramente, aceitando em seguida a bebida e o acordo.

𝑰𝒏𝒗𝒊𝒄𝒕𝒖𝒔Onde histórias criam vida. Descubra agora