A primeira lição

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Há coisas que acontecem sem que possamos prever ou impedir. Vovó costumava me dizer que tudo na vida segue o curso de Long-Wang.

Certa vez, ainda nos anos iniciais da escola, nossa turma participou de uma gincana e minha mãe me deixou bem animada com a ideia, falando que era divertido porque teria várias brincadeiras. Entretanto, meu time (o vermelho), ficou em último lugar e eu participei de apenas uma das brincadeiras devido má organização da gestão escolar. Para completar, o sorvete que ganhei no termino das ativudades, caiu no chão antes que eu terminasse.

Chorei bastante naquele fim de tarde. Parei depois que vovó me ligou e contou a história dos Reis-Dragões: Ngao Kuang, Ngao Juen, Ngao Chen e Ngao Chin, os responsáveis pelos quatro mares da Terra.
Segundo ela, cada um possui um grande exército formado por animais marinhos e protegem as profundezas das águas, entretanto, desde os primórdios, a água sempre foi símbolo de vida e prosperidade, incluindo o povo humano.
Sendo assim, a menor gotícula de água está sob poder de um Rei Dragão, assim como nós e os acontecimentos que nos circundam.

Vovó disse que eu deveria ser grata pela proteção dos deuses e focar nas coisas boas que haviam acontecido, porque as partes ruins me fariam crescer e aprender algo novo.

Eu acreditei nisso por muito tempo, mas agora, depois de ter me sentido tão sensível às previsões, a ideia de que eu poderia tomar as rédeas do universo e controlá-lo ao meu favor, batuva em minha mente como os tambores dos tempos antigos.

Eu poderia ter salvo a minha amiga, pois tive vários sinais de que algo estava completamente errado, mas simplesmente optei por ignorá-los e seguir em frente. Esse pensamento, em fração de segundos, fazia meu coração disparar e minhas mãos tremerem.

Pudong continuava o mesmo ambiente de ar puro e a vizinhança andava calada pelo acontecimento recente.
Titia adorou conhecer Daya, que tagarelava sem parar enquanto desenvolvia projetos com rapidez em seu notebook, sentada em uma das mesas do restaurante.

-Uaaa! Eu amei o que fizeram nesse lugar, parece que estou em alguma dinastia. - ela suspirava vez ou outra.

Passávamos a maior parte do tempo distraídas e Daya me mostrava a evolução do seu trabalho com orgulho.
As vezes sorria ao olhar uma mensagem no celular e eu sabia que era de Hoshi, mas ninguém nunca tocava no assunto da tragédia.

Titia estava prosseguindo com a ideia de abrir uma filial do restaurante em Tokio e eu a encarava tentando parecer animada com seus projetos.

Não demorou dois dias para que Daya apresentasse um modelo de identidade visual completamente autêntico para a nova loja. Conforme a observava, ela se tornava mais uma mulher que eu admirava e pouco a pouco me sentia mais segura e próxima.

Estávamos encarando as velhas estrelas néon do teto do meu quarto quando ela finalmente perguntou séria:

- Tem falado com ele?

- Não mundo. - respondi com um nó na garganta.

- Você é querida por muitas pessoas, Lili. Não se feche.

- Eu não sei o quê, mas algo mudou em mim.

- Vamos descobrir juntas.

Ficamos em silêncio até que o canto longínquo das cigarras embalaram meu sono.

Dezoito anos... Em pouco tempo eu havia me tornado uma adulta, amado o homem que sempre desejei, perdido s virgindade, usado drogas e visto um cadáver. Como isso poderia ser vontade do Rei Dragão?

Por mais que pensasse, não conseguia compreender o porquê minha vida seguia sempre o pior curso. Eu havia sido amaldiçoada para perecer? Havia sido uma criminosa nacional na vida passada?

Ainda que dormisse minha mente não desligava e a todo momento meu corpo se lembrava da sensação de medo e terror que vivenciei. Agora eu era apenas uma casca vazia perambulando e carregando o peso da memória.

Na manhã seguinte, exata uma semana após nossa chegada a Pudong, acordei antes do nascer do sol. Coloquei meu vestido de tule feito por vovó. A peça era delicada e se arrastava no chão, em tom de lilás com pequenas borboletas em relevo.

Penteei meus longos cabelos e deixei meio preso com um grande de pedrarias que completava o conjunto tradicional chinês.

Olhei para Daya e sorri. Ela estava entorpecida por algum sonho bom e suave, transparecendo em seu rosto calmo. Queria me sentir da mesma forma.

Peguei minha bolsa com tudo que precisava e segurei a saia do vestido antes de correr para fora de casa.
O orvalho havia molhado a rua e as árvores secas pelo inverno gotejavam de forma suscinta, resistindo ao vento gélido do início de ano. Logo seria primavera e a rua estaria florida, mas e eu?

Corri até as margens só rio Huangpu e avistei a primeira linha do sol no horizonte, abençoando os arranha-céus de Shangai.

Encostei o celular em um lingustro* próximo e coloquei no modo Live do Instagram. Tirei a caixinha de som da bolsa e coloquei "Xian Yun" - Hita para tocar. Era a única música que chegava até meu coração naquele momento.**

Dancei nas margens do rio e deixei que a voz doce da cantora me levasse para o Terraço dos Imortais, em meio às nuvens.

As lágrimas caíram enquanto me movia entre a brisa do alvorecer. Naquele momento eu não era uma casca vazia, mas sim Zhu Mai Li. Não era filha, nem neta ou sobrinha de ninguém, era apenas um espírito livre.

Não havia sombras do passado nem temores das projeções futuristas. Era somente meu corpo, alma e coração em comunhão com a melodia suave
A música repetiu constantemente e por uma hora, até o sol estar alto no céu, me movi sem parar.

Havia espectadores quando terminei e todos aplaudiram minha dança emocionados. Me curvei em gratidão, tentando me recomeçar ao plano terrestre. No meu celular, inúmeras de notificações subiam de forma frenética.
Antes de encerrar a Live cumprimentei meus seguidores:

- Olá, margaridas. Tudo bem com vocês? Espero que sim. Aqui está tudo bem agora.
Obrigada por terem me acompanhado nessa dança por esse tempo. A dedico para Jiang Li. - embarquei o choro e encarei a câmera do celular - Ji,sei que está correndo pelo plano celeste agora, com sua alma liberta dos medos e anseios terrenos. Espero que tenha gostado da dança. Sempre a levarei comigo.

Encerrei o vídeo e enxuguei as lágrimas insistentes antes de encarar o horizonte mais uma vez.
Crescer é aprender algo novo a cada dia e naquele dia em questão eu havia aprendido a me despedir.




*árvore de origem chinesa comumente usada em arborização de parques.

**Escute a música e tenha uma experiência imergente.

Lilili Yabbay (Wen Junhui)Onde histórias criam vida. Descubra agora