Quem iria acreditar?

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Nos anos 90, minha única preocupação era saber o quanto de maconha eu conseguiria fumar antes de perder completamente o rumo da minha consciência - e claro, tudo isso longe da tutela dos meus pais. Longe de qualquer coisa que me impedia de ser eu mesmo: assim eu vivia. A liberdade tinha um sabor diferente, justamente porque nem eu sabia que a tinha - como um peixe que não sabe que está embaixo d'água. Os passeios nas serras eram muito mais interessantes - porque as estrelas brilhavam muito mais. O álcool e tudo o que saia da minha boca tosca e juvenil era o melhor momento entre os meus amigos - e hoje, dentre eles, só eu sobrevivi.

Se eu soubesse de tudo o que viria, jamais abriria a boca para reclamar de qualquer coisa que saia da boca dos meus pais. Até o mau humor da minha mãe era mais engraçado do que as piadas que eu era obrigado a suportar - e que a Grande-Mãe-Gorda-Trans-Preta-Cadeirante-De-Cabelo-Azul nos sujeitava a aceitar. Se houvesse em mim um espírito tão irônico e masoquista como o deles, talvez eu fosse capaz de conviver pacificamente em sociedade - ou, por algum tipo de loucura auto-imposta, ter uma vida feliz e prazerosa com toda aquela tragedia. Não foi o caso: eu ainda permaneço humano, permaneço vivo e permaneço acordado - e, por isso, eu sou o homem que não tankou.

Mas quem iria acreditar? Quem poderia prever que toda aquela bobagem dos livros distópicos estava certa? É bem verdade que George Orwell não previu o TikTok - nem o seu poder autoritário e absoluto como a Grande Mídia Internacional - e até Aldous Huxley não tinha em mente o poder que uma simples mulher de cabelo colorido poderia ter de dominar completamente a mente de um homem. Não foi como imaginávamos - não havia neon o suficiente para um cyberpunk estético com carros dos anos 80 e prédios gigantes. Na verdade, o futuro era como antigamente: os mesmos prédios, as mesmas ruas e as mesmas cores - e talvez fosse a aparência de normalidade que sustentava toda aquela fantasia satânica e lhe desse ares de uma tranquilidade fruto do progresso inevitável.

Por onde começar? Tantos foram os sinais de que as coisas não estavam funcionando como deveriam - mas que ignoramos, porque as suas causas eram tão indefesas quanto as suas propostas de mudar o mundo e colocar em prática tudo o que planejavam. Suas mãozinhas delicadas, seus rostinhos bonitinhos e suas boas intenções só nos fizeram acreditar que apenas se tratava de um gatinho pedindo por comida - o nosso erro não foi alimentar, mas trazer para dentro de casa. Ninguém poderia imaginar que esse gato dominaria completamente a cabeça de todos os moradores da casa - mas a sua aparente fofura e inocência eram tão brilhantes que até o mais sinistro dos imperadores teriam inveja da sua capacidade de mandar e se fazer entender.

E foi o que aconteceu: de uma brincadeira irônica ao personagem; do personagem ao drama; do drama ao sofrimento; do sofrimento ao choro; e do choro, à rendição absoluta. Abaixar a cabeça foi o último passo que demos para que a Grande-Mãe-Gorda-Trans-Preta-Cadeirante-De-Cabelo-Azul pudesse, definitivamente, assumir como aquela capaz de ditar os rumos de nossas vidas. O que deveríamos ouvir? O que deveríamos gostar? O que poderia ser dito? Tudo o que a Grande-Mãe-Gorda-Trans-Preta-Cadeirante-De-Cabelo-Azul permitisse, porque ela é quem possui a maior autoridade para isso. E como ela chegou no poder absoluto? simples: ela é uma mulher gorda, trans, preta e cadeirante - ela simplesmente se declarou a Grande Mãe da Humanidade e ninguém ousou questionar (uma vez que a duração da pena por todas as fobias que daí viria seria capaz de fazer inveja ao infinito).

Parece loucura - e é. Eu escapei do maior absurdo que a história da humanidade já foi capaz de produzir. Foi como Ouroboros - mas acabamos chupando o nosso próprio pau. O que poderia vir de bom desse espetáculo? A risada era o que nos restava, como quando o desespero é tão profundo que nem mesmo um lamento desolador seria capaz de traduzir, em choro, o que se passava naquele coração. Como malucos, dançamos o show - até que era necessário escolher entre a música que a banda tocava ou a preservação dos ossos moídos das nossas cansadas pernas - e tudo isso por culpa de uma única pessoa: Belle Belinha.

O homem que não tankouOnde histórias criam vida. Descubra agora