O louco e o bêbado

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Guardada as devidas proporções, toda grande guerra é composta de alguns simples elementos: uma justificativa - que nunca pode ser justificada -, o objeto a ser conquistado e alguns poucos velhos homens. Toda tragédia é uma sina: um prelúdio eterno que se materializa no apagar das luzes de toda a mal fadada esperança. Deus inventou o amor - o diabo, a expectativa. Esperar que as coisas simplesmente melhorem é a cereja do bolo de uma receita venenosa - e ninguém entende melhor de feitiço do que uma mulher.

Quando aqueles três últimos pilares que sustentavam o Brasil ruíram - uma família católica, carnaval e muita cachaça - tudo o que nos restava - e aqui me refiro a última geração que ainda enxergava a luz e entendia que ela vinha do Sol - era abraçar o doce destino ou condenarmos publicamente e sermos crucificados de cabeça para baixo. Não tínhamos a coragem de São Pedro, mas tínhamos a loucura de São Paulo. A rebeldia escorraçada por nossos pais fora a última bala no tambor capaz de mantermos vivos por mais alguns instantes de tempo - quanta ironia!

Mas a loucura sem coragem é cínica; alguém dizia que chegaria o dia em que teríamos que provar que a grama é verde - quem dera voltássemos a estes gloriosos e saudáveis dias. No Regime, tínhamos que provar que a grama era uma grama. Kant convenceu metade da Europa que o substantivo era impossível; Hegel convenceu a outra metade que negar tudo quanto existia era a verdadeira filosofia. O produto dessas duas premissas não poderia ser menos do que a definição exata e perfeita de esquizofrenia. O debate público mundial era uma disputa entre um louco que afirmava ter a essência do universo em suas mãos, mas que ninguém poderia ver, e um bêbado que discordava de qualquer afirmação psicodélica e puramente abstrata que o primeiro emitia. Os dois eram alemães - e agora fica muito mais fácil de entender porque aquele estrangeiro conseguiu chegar ao poder.

A ebriedade de Diógenes é limpa; era horrível dizer qualquer barbaridade para um sorriso tão ingênuo e inocente como o de uma criança. A maior arma do homem é o seu músculo; da mulher, a sua língua. Em um mundo abandonado pelo pai, a malícia era o único pecado que nos restaria.

Em um dia como qualquer outro - ou seja, aquele medíocre dia em que o Brasil importava tudo o que era americano - o debate já estaria tomado daquela dialética do louco e do bêbado. O povo, como bom espectador, assistia adestrado e bem alimentado o quadro patológico que se desenvolvia bem diante dos seus olhos. A raça mandava; o vira-lata obedecia. Primeiro riu; depois entendeu; em seguida repetiu; e finalmente absorveu. Quando as duas únicas frutas conhecidas são laranja e mamão, não se espera que desta cozinha sairá um bolo de limão. Era tão óbvio quanto a luz do dia, mas tão inebriado quanto a inércia do vapor quente sobre o espelho frio. A imagem refletida não era nítida, e as cores que projetavam eram entendidas da forma como o observador desejasse enxergar.

Não importava o presidente, o sistema jurídico e tampouco as Forças Armadas: se o jogo é democracia, então é por meio dela que o poder será exercido. O problema foi justamente esse: excesso de poder popular. Algumas pessoas diziam que o Brasil não era de fato uma democracia, e eu até concordaria se o argumento fosse direcionado ao funcionamento e as regras do sistema estritamente eleitoral e em como a composição era de fato resolvida. Mas em hipótese alguma aceitaria a ideia de que as mazelas assoladas no lombo do nosso povo tinha alguma coisa que não fosse puramente democrática; foi exatamente por termos dado as chaves do carro à uma criança que as rodovias se entupiram de corpos desmembrados.

Se pudéssemos apontar um culpado, um niilista diria: "isto é serventia do Altíssimo!"; se quiséssemos expiar na fogueira um condenado, o crente certamente gritaria: "tudo isto é culpa de Satanás!" - e aí entenderíamos porque quando Pedro fala de Paulo compreendemos mais Pedro do que Paulo (e quem nos dera fossem os santos!). A ideia de um tribunal é acusar o dolo e quem o carrega. O problema é que, quando chegou a hora de elaborar a sentença, o povo - muito bem cordial, como dizia um certo autor - como um bom covarde, apontou tanto para cima quanto para baixo: elegeram uma Ideia como a grande culpada. Como todos nós sabemos - ou deveríamos saber - um conceito não sai por aí fazendo sacanagens e criancices. Uma ideia é, no máximo, um pentelho incômodo, uma erva daninha ou os fios de cabelo que nascem na nuca. Os fios de uma nuca não cometem atrocidades - apenas assistem inimputavelmente ao algoz perpetrar a sua miséria.

No alto debate: o louco e o bêbado. No baixo debate: o descrente e o asceta. A sensatez, a primeira mulher estuprada no Brasil, tinha sido cuspida e enterrada como indigente já nos primeiros segundos do primeiro tempo. Se Buda fosse brasileiro, seria o segundo. Nestas terras, o equilíbrio nunca foi a resposta, mas a pergunta - e a afirmativa era sempre negativa. Quando escalavam o cume de uma montanha, dormiam; quando desciam, festejavam. É difícil não enxergar graça num país onde um homem anda com a sua cabeça firmada no chão e as suas pernas apontadas para cima; mas é impossível não se aterrorizar com o fato de que ninguém está achando exatamente o mesmo.

O homem que não tankouNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ