O homem que não tankou

O debate

- Primeiramente, gostaria de agradecer imensamente pelo espaço cedido por essa emissora; é uma honra fazer parte deste momento tão decisivo e importante para o nosso país - disse o candidato canhoto que, por uma simples questão de inutilidade, não cabe expor neste livro mais do que apenas sua orientação política, que será extremamente relevante e interessante para o deleite de todos aqueles que ainda esperam o que virá a seguir.
- Nós, o povo brasileiro, estamos cansados das mesmas palavras de sempre; estamos cansados de lutar por um Brasil melhor e ver a desigualdade e a injustiça reinando sobre as nossas almas. Hoje, eu quero falar com você que não aceita o país dessa forma e quer ver uma mudança real acontecer. Eu, que tanto lutei pelo meu país, tenho o que é preciso para enfrentar todos os poderosos de Brasília e trazer de volta a alegria dos brasileiros! Por isso, eu peço à você, que no próximo domingo, vote em mim! Não precisamos de um reacionário - disse o canhoteiro enquanto apontava e olhava para o candidato destro - e não podemos contar com a falta de experiência e preparo...
- Direito de resposta! - diz a Grande-Mãe, ainda chamada simplesmente como Lucrécia Pinkstar.
- Direito de resposta imediatamente concedido - disse assustado e evasivo o mediador do debate, se aprontando rapidamente para conceder os desejos de Lucrécia Pinkstar.
- Mas eu ainda tenho mais 35 segundos de fala! - questiona o canhoteiro, como quem não entende o que está acontecendo.
- Caro candidato, como nossa emissora respeita amplamente os direitos de pessoas historicamente marginalizadas, o senhor, como um homem branco e assumidamente heterossexual, fez um apontamento na sua fala que constrangeu e agrediu a dignidade da candidata Lucrécia Pinkstar, o que configura uma grave advertência e não será tolerada novamente, cabendo a expulsão deste debate. Agora, com a palavra, candidata Lucrécia.

Após este breve e magnânimo discurso, ter visto o rosto do candidato canhoteiro foi, sem dúvida, umas das cenas mais interessantes e deliciosamente sadomasoquistas que eu já presenciei em toda a minha existência. Como descrever aquelas expressões? Uma interessante mescla de sorriso amarelo de canto de orelha, com uma genuína expressão de medo de alguém cuja máscara o obriga a jamais se indispor com os seus semelhantes, um leve toque de incompreensão e um intenso e profundo cerrar de cenho como quem busca entender tudo aquilo que está acontecendo. Por uma lado, foi maravilhoso contemplar o lobo estilhaçando os delicados membros do menino que insistia em brincar com fogo; um Schadenfreude certamente descreveria com exatidão aqueles bons segundos onde contemplei um prazer malicioso manufaturado diretamente das camadas mais profundas do que descrevia Dante. Entretanto, o mesmo Diabo que me dava o pão que alimentava meu espírito, não o fazia por bom samaritanismo: antes, comi-o pisado. O inconfundível agridoce do pecado é o mais claro sinal de que Deus chegará em casa e que a carne levará boas chineladas. Se Deus fosse uma mãe latino-americana, a marca do chinelo já estaria por toda a minha bunda.

- Primeiramente, eu gostaria de deixar registrado para todo o Brasil a agressão que sofri em plena rede nacional. É inadmissível, mas infelizmente esperado, que neste país até mesmo quem se diz lutar por nossas causas minoritárias reproduz um discurso claramente homofóbico, racista, xenofóbico e capacitista. O que leva o candidato a supor que eu não tenho experiência e preparo? De onde ele tira razões para concluir isso? Eu imagino que ele responderia comparando o seu extenso trabalho nos sindicatos por onde atuou, nas políticas de base que viveu por todo país, na construção de alianças com os movimentos sociais e tudo o que ele precisou fazer até chegar a presidência há alguns anos atrás. Entretanto, eu poderia responder a tudo isso com uma simples frase: Teria o senhor conseguido realizar tudo isso se não fosse homem, branco e assumidamente hétero? - disse Lucrécia Pinkstar, enquanto era fortemente ovacionada e aplaudida fervorosamente pela plateia que acompanhava o debate.

Os pouparei dos detalhes mais entediantes; o que se seguiu depois da resposta ao canhoteiro foram longos e exaustivos cinco minutos de falas indiscriminadas sobre como uma pessoa absolutamente fora dos "padrões hetero-branco-bípede-normativos" (segundo palavras da própria Lucrécia na época) é totalmente excluída e marginalizada de uma sociedade comandada por "velhos homens brancos e héteros", exatamente o que ela disse em rede nacional, em horário nobre, em um canal de televisão comandado por velhos homens brancos e héteros.