Como tudo começou

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Dado o estado natural das coisas em que nos encontrávamos naquele período - e visto que, dada a complexidade e estado avançado de decomposição do organismo, nada poderíamos fazer - o caminho já está traçado e devidamente delineado para que o leitor possa ir de encontro ao que de fato e literalmente aconteceu.

Em um belo dia normal no Brasil, as coisas se degringolavam na velocidade de um cintilar azul brilhante de uma estrela cadente, ou - para sermos mais precisos - na constante e acelerada velocidade de um corpo denso e sem resistência ao ar experimentando a doce lei da gravidade, rumo em uma queda livre despretensiosa e inocente. Que iríamos nos deparar com o impacto avassalador das ruínas que se encontravam no final deste salto, já se era esperado - e talvez por isso aceitamos a dor assombrosa e diabólica do agridoce abraço fraternal de um pai bêbado e agressor reencontrando seu insolente e sincero filho de 5 anos.

Quem nos dera se a punição fosse algumas fiveladas na cabeça! Certamente o resultado de um fratura interna seguida de um desligamento total das funções motoras seria-nos menos trágica, menos dolorida e menos desastrosa do ponto de vista romântico, sensorial e pavorosa. A tragicomédia nos ensina que até na absoluta desgraça um sorriso é possível - exceto quando a desgraça vem em doses homeopáticas e entediantes. Todos esperam uma revolução no domingo - mas nunca na terça feira. Há uma história real em que o golpe de 64 foi adiado porque um dos generais responsáveis não gostaria de executar tamanha manobra jurídica em uma dia de lua cheia, por temer algum tipo de mal agouro ou coisa do tipo. Alguns leitores poderiam pensar que ele estava absolutamente errado, mas sugiro exercitarmos a função dialética do advogado do diabo - ou, neste caso, de Castelo Branco -: Provavelmente, termos evitado o fantasmagórico e assustador efeito placebo da lua cheia no crânio de certos generais poderá nos ter evitado algo ainda mais esquisito e sobrenatural.

"E se os porões do  DOI-Codi voltassem? De que adiantaria?" Era o que eu me perguntava alguns dias antes de escrever as páginas deste capítulo. O sonho da última geração - a minha - com o seu legítimo e afável movimento emo (cópia barata e comercial do já consolidado movimento gótico) exprimia um único e central desejo: O de sentir tudo e até ao mais profundo poço sujo e repugnante da alma humana. As consequências dessa ideia foram tristes, justamente porque geralmente um poço é, sem sombra de dúvida, fundo; o que foi visto lá em baixo pela minha geração foi algo que nós, certamente, não queríamos nos lembrar.

Quando desistimos de chorar as pitangas e espernear como uma garotinha pelo leite derramado, tomamos um tapa na cara dos nossos pais, imprimimos currículos e nos aventuramos sem rumo e sem destino na imensidão de ruas e possíveis destinos que, em sua última palavra, nos findaria diretamente para os mesmos apartamentos sujos, colados, morosos, mofados e decadentes - que combinavam tanto com o poço, mas com a diferença de que nós não poderíamos chorar pelas pitangas ou espernear como uma garotinha pelo leite derramado neste début fin de siècle de mau gosto.

Alguns de nós desistiram completamente de enquadrar algum sentido - mesmo que autoenganadamente - para o medíocre encerramento dos sonhos e desligamento de nossas vidas; alguns retornaram àquela antiga coisa, "que não me lembro bem, acho que era alguma coisa a ver com Deus e Maria que eu ouvia os meus pais falarem"; outros simplesmente carregavam ossos e corpos mortos por aí - infelizmente não dos outros, mas de si mesmos - e mais alguns deram mais ou menos certos desse pesadelo e criaram filhos. Sobre o último caso, mesmo sendo o menos pior, no Brasil, o menos pior é, na verdade, terrível por definição. O que pais cansados fazem com o seus filhos? Isto: absolutamente nada. E foi a troca da paternidade por I-pads que guiavam toda uma geração, que evidentemente se retorcia e agoniava nas entranhas de uma sorte de mal fadados e aleatórios casos. Nem tudo era lícito, mas tudo lhe convinham.

- O que você tanto vê nesse celular? Perguntava o pai, curioso para descobrir as novidades tecnológicas que permitia ao seu filho desbravar a imensidão cosmológica do mundo virtual.
-Nada, respondia o filho, indiscriminadamente.
-Nada? É impossível estar vendo nada.
-Não é nada, mas nada de mais.
-Nada de mais era o que eu fazia quando não tinha nada de mais para fazer, dizia sabiamente o pai.
-E por que eu deveria fazer alguma coisa séria? Indagava burramente o filho.
-E por que você precisa de algum motivo? Nenhuma coisa que os adultos fazem têm motivo; só fazemos porque queremos, ou porque devemos, ou porque precisamos.
-Nunca parou para pensar para onde você vai pensando desse jeito? Insistia tolamente o filho, não entendendo as maravilhosas razões de não ter razões para fazer qualquer coisa.
-Veja - disse o pai, enquanto olhava para o alto, como quem fosse proferir um ensinamento transcendental - as pessoas geralmente buscam sentido para tudo o que fazem porque elas não estão satisfeitas com o que elas estão sentindo dentro de si mesmas. Por isso, elas vêm e vão, perseguem e retornam, aparecem e se escondem; elas desejam algo que não sabem sequer definir. Quem procura o que não sabe achará o que não quer e jogará fora qualquer coisa que encontrar.
-Ahh... tolice - disse tolamente o filho, sem compreender que a boa vida é aquela desgarrada e despretensiosa de sentido.

O homem que não tankouWhere stories live. Discover now