O reinado do terror

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Ninguém ouviu tiros; não houve sequer uma gota de sangue derramada naquele emblemático dia - e nem haviam homens o suficiente capazes de portarem em suas mãos algum armamento além de pirocas de plástico ou da elegantíssima mamadeira de piroca. Se pelo menos esta última tivesse a decência de descer do mundo das ideias e compartilhar da esplêndida realidade e da maravilha que é viver no Brasil dos brasileirinhos, haveria ao menos alguma dignidade - porque seríamos governados por uma piada autodeclarada, e não por palhaços que se levaram a sério.

Estava óbvio: o nariz vermelho não é apenas uma roupa, mas um signo; quando você o usa, automaticamente tudo o que sai pela sua boca perde totalmente a validade no mundo concreto, de coisas concretas e trabalhos concretos. Pensar em um filho criado na base da mamadeira de piroca é divertidíssimo; Ter é onde mora o desastre. As coisas são como são - e são bem quando não deixam de ser. Mas quem deu o primeiro tiro e removeu o palhaço daquele palco? Trocando por miúdos: quem elegeu a Grande-Mãe-Gorda-Trans-Preta-Cadeirante-De-Cabelo-Azul? Não houve sequer um concurso de popularidade - como é na nossa democracia - foi apenas a mais pura autoproclamação (que Napoleão, sem dúvida, sentiria inveja).

O imperadorzinho da França, quando tirou aquela coroa das mãos do Papa e colocou entre os cachos dos seus suaves cabelinhos, o fez como quem pensa "isto os deixará totalmente revoltados!" - e realmente produziu este efeito, tanto que o seu reinado foi como a noite de um bêbado: intensa, esquizofrênica e amanhecida com fortes dores intra-renais. Todavia, houve resistência - em nosso caso, a história procedeu da forma mais sem graça possível - nem mesmo as dores prazerosas intra-renais estimuladas no ponto G do homem puderam ser sentidas. 

Mas digo agora exatamente da forma como se procedeu: o nosso país já tinha ido para o saco há muito tempo. Gostando ou não, concordando ou não, o conjunto-das-coisas pelas quais a nossa nação tinha sido construída - a saber: uma família católica, carnaval e muita cachaça - foram minadas uma a uma. Uma vez que os velhinhos tinham ido buscar seus respectivos asilos fora dessa terra, toda a tradição religiosa tinha se perdido com eles. O carnaval, a unidade absoluta da cultura popular brasileira perdeu completamente o sentido - uma vez que a graça do pecado está no fato de ele ser algo proibido. Uma pessoa fuma uma pedra de crack para sair da realidade. O problema foi justamente esse: o mundo passou a, de vez em quando, vestir terno e trabalhar para fugir da realidade psicodélica e completamente aleatória do mundo das drogas. Radical era o virgem - normal era quem tinha mais de mil picas chupadas. Exceto fevereiro, todo mês era mês de carnaval. Isso implica que a completa sacanagem virou regra - e, como regra, uma ordem. Como ordem, precisava ser justificada - e estar sóbrio era uma dessas formas. Por isso, a cachaça, último pilar que segurava o Brasil rumo ao desfiladeiro, rompeu. Todos queriam ser sensatos - mas a loucura da sua sensatez estava justamente no fato de perguntarem ao palhaço o que ele acha sobre segurança pública e tratamento de esgoto. 

Se um circo está pegando fogo, não é sensato pedirmos a um grande médico ou a um grande advogado que tome conte das chamas - e quem entende mais de espetáculo do que o cara de nariz vermelho? Quase que como um destino manifesto, um zeitgeist strictu sensu, a plateia, em prantos de misericórdia, gritou para que seus pulmões pudessem se fazer ouvidos - e foram atendidos. Belle Belinha - que entendia muito bem do que é digno da sua geração - ouviu o clamor choroso e desesperado de uma nação que, cansada do caos quebrado da ordem, pedia por uma ordem que fizesse sentido para aquele novo caos - esquizofrênico, pós irônico, não-comprometido e completamente cínico. Ela sabia do seu papel como comunicadora, mas tinha em seu peito a humildade de quem entendia que o seu país precisava de alguém que representasse, de fato, o que ele tanto merecia - e não o que pedia. 

A Grande-Mãe-Gorda-Trans-Preta-Cadeirante-De-Cabelo-Azul parecia perfeita: lendária, intocável e represente máximo da trip lúcida de cogumelos que vivíamos enquanto nação todos os dias. Ela era perfeita não porque podíamos apontar para ela as suas virtudes, mas porque não podíamos dizer em voz alta quais eram os seus defeitos. Nós não perdemos - nós deixamos de ganhar. Belle Belinha não precisou fazer muita coisa: como amiga pessoal da Grande-Mãe-Gorda-Trans-Preta-Cadeirante-De-Cabelo-Azul, bastou que ela se conclamasse A Rainha Suprema da Humanidade em um vídeo no tiktok e todos - não ironicamente - a elegeram como quem dizia ser. 

O resultado de uma receita depende exclusivamente dos ingredientes que o prato leva. É diferente da matemática, onde a ordem dos fatores não altera o produto. Socialmente falando, é impossível deixar reta e perfeita uma folha de papel já amassada. Se a regra é dançar com o palhaço, todas as suas consequências serão igualmente espalhafatosas. Não houve brilho, nem glamour, nem grande coisa que justificasse a tomada do prumo naquele navio: todo mundo sabia que se tratava do Titanic. "Por que continuarmos com um capitão, se o destino é afundarmos de qualquer jeito?" disseram os tripulantes. "Se morrerei congelado, que seja com um sorriso no rosto" pensaram os náufragos. E por fim: "Se estou nos meus últimos segundos de vida, foi porque não me jogaram uma boia" disseram os suicidas.

O homem que não tankouOnde histórias criam vida. Descubra agora