Capítulo 11

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|Luz Noceda|

O barulho dos pingos de chuva caindo abruptamente no chão é o único som que corta o silêncio entre nós duas.

O céu deste fim de tarde está escuro e as ruas estão praticamente vazias por conta das massas frias que chegaram à cidade.

De soslaio posso ver que Amity está quase congelando com todo esse frio.
E eu já não estou mais tão concentrada em manter distância da garota ao meu lado, levando em consideração que chegar um pouquinho para o lado significa pegar chuva.
Minha calça está molhada e parte da  blusa do uniforme também, não quero nem pensar no que seria de nós se Eda não tivesse nos oferecido um guarda chuva.

Scooby late dentro da caixa transportadora dando sinal de vida assim que passamos em frente a biblioteca, fazendo Amity sair de seus devaneios e levar um pequeno susto.

— Eu só preciso parar aqui e deixar ele com a dona. - Ela diz e eu apenas concordo com a cabeça.
Alguns minutos depois ela volta com seu celular e um papel em mãos.

— Você pode guardá-los na sua mochila, por favor? - Seu tom estava mais baixo do que o normal e as palavras parecem sair rasgando sua garganta.

Pondero enquanto observo o desenho infantil nas mãos alheias.
Hilário.

— Posso sim. - Respondo passando o guarda chuva pra ela e pegando seus pertences.

As palmas de nossas mãos se tocam por um momento, o pequeno atrito causa uma corrente elétrica que percorre todo meu corpo.
Ignoro a sensação boba, deslizando minha mochila para frente guardando tudo em um dos bolsos.

— Obrigada... - Sibilou.

Mais uma vez, as malditas mãos se encontram assim que a Blight devolve o guarda chuva, nos fazendo entrar numa espécie de transe.
Meus traidores olhos oscilam entre os detalhes do rosto tranquilo de Amity e seus lábios delicados, ela repete a mesma ação vagarosamente.

Aquele momento refletia uma nostalgia só nossa.
Era como voltar a ter quinze anos de novo, mas aquilo não era tão reconfortante assim.
Os nossos olhares já não esbanjavam mais aquele minucioso afeto que tínhamos uma pela outra anos atrás.
O tempo passou e esse afeto foi substituído por um sentimento maior, mais ardente,
a raiva.

Como se fosse um aviso prévio do destino, um carro avoado passa
por cima de uma das várias poças e joga aquela água gelada do asfalto em nós duas.

Grito alguns bons palavrões para o motorista, que na pressa que estava já tinha virado a esquina.

"Ainda bem que esse corno não deu ré." Escuto Amity dizer pra si.

— Vai ficar aí me encarando nessa chuva ou vai andar logo?! - Quebro o contanto visual.
Volto a andar com ela me fitando desacreditada.

— Como se você não estivesse fazendo o mesmo. Aliás, não se esqueça que por causa de mim você tá voltando mais cedo pro dormitório. - Já que não está carregando nada, a folgada cruza os braços quando termina a frase.

— Por causa da chuva estou voltando mais cedo, - Corrijo — e querida, eu prefiro trabalhar do que ficar mais tempo trancafiada num quarto com você. - Olho para Amity ao meu lado, tremendo e vermelha como um pimentão. — Céus, você está péssima. Parece um poodle molhado com raiva. - Ela resmunga de raiva e eu sorrio.

Poucos minutos depois, chegamos em Hexside. Na entrada do dormitório há um grupo de pessoas fumando e conversando.
Amity e eu paramos na porta principal para que eu fechasse o guarda chuva de Eda.

O grupo ali presente para de conversar assim que me vê, passando a me olhar com um julgamento estampado na cara.
Mantenho minha postura e analiso um por um.

— Vem, Luz. - Amity entrelaça nossas mãos e na mesma hora eles fingem esquecer que eu existo.
Realmente ficaram intimidados e surpresos com a ação da Blight ao meu lado.

Minhas sinapses parecem explodir ao tentarem processar tanta informação.

Fomos até nosso quarto, soltando nossas mãos para que eu pudesse abrir a porta com as chaves.

— Pode tomar banho primeiro. - Pronuncio trancando a porta e depois esvaziando a mochila na cama.

— Que cavalheirismo, Noceda. - Amity ironiza olhando pela janela a chuva cair lá fora.

— E que fique bem claro que só estou fazendo isso porque se você ficar doente, eu também fico. - Pontuo, dando alguns passos a frente lhe entregando o celular e o desenho.

— Eu devia ter jogado aquela maldita tinta em você quando tive a chance.- Se prontificou em proferir rispidamente, desviando o olhar e rumando até o banheiro.

E como minha mãe sempre diz "alegria de pobre dura pouco", era óbvio que o assunto da festa iria vir à tona.

Mas porque Amity me defenderia duas vezes? Ela não tem motivos pra isso.
Entrelaçar nossas mãos foi um ato de dominância impulsivo, já que ela sabe o poder que tem sobre as pessoas.
Mesmo assim, não faz o menor sentido.
Além disso, eu não preciso de proteção, minha mãe me criou muito bem pra isso.

Eu só... Só não quero pensar nessas coisas agora.

Me sento no chão do quarto para não molhar a cama e espero a "madame" sair do banheiro.
Pego meu celular e respondo algumas mensagens de Willow e Gus.
Os dois estão ansiosos para conhecer Hunter na quarta feira depois do nosso expediente. Acho que vai ser bom para ele ter a chance de fazer outras amizades além da nossa.
Todos concordamos de ir em alguns lugares legais que Gus achou por Boiling Isles.

Meus braços estão um pouco doloridos por causa dos movimentos repetitivos que faço no trabalho.
Vai que além de receber meu salário de quebra¹ , acabo ganhando alguns músculos...

Escuto a chave girar e a porta do banheiro abrir.

— Luz. - Ela chama e eu a observo. Amity agora usa um pijama de estrelas folgado, junto dos cabelos lavados e devidamente penteados.

— Sim? - Me levanto do chão e vou até a minha parte do armário para escolher alguma roupa antes de tomar banho.

— Olha, eu não gosto nem um pouco de você mas... - Posso ouvir ela respirar fundo e diminuir o tom de voz. — não acho certo isso que estão fazendo. Você acabou caindo nessa situação de paraquedas e as pessoas estão fazendo comentários horríveis sobre você num maldito perfil de fofocas.

Mesmo estando distante me viro de frente para ela, escutando atentamente o que ela tem a dizer.

— E sobre aquele vídeo, não é o que parece. Eu só tava cansada daquela situação e decidi por um fim naquilo tudo, não é a primeira vez que essa coisa toda acontece. A Boscha ficou com raiva e achou que se te prejudicasse estaria me atingindo. - Ela respira fundo, evitando contato visual.

— A parte do perfil de fofocas é nova pra mim. Mas logo comigo?! Ela não poderia ter escolhido qualquer outra garota com quem você já se relacionou? Ninguém daqui me conhece.

Amity parece ficar três vezes mais cautelosa, em estado de alerta.

— Não sei. - Ela deita na cama indicando que a conversa acabou.
E é exatamente nesse momento que tenho a certeza de que ela está mentindo, mas por quê?

De quebra¹ = "a expressão seria mais um, algo a mais ou uma gentileza".
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Notas: ontem voltei no lugar onde beijei pela primeira vez uma menina, que nostalgia

Me perdoem por qualquer erro ortográfico.
Por favor, não sejam leitores fantasmas. Seu "simples" comentário dará incentivo para que eu possa continuar essa obra.

You again - LumityWhere stories live. Discover now