Woodburry

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~ Evelyn Santiago ~

   Depois de passar os últimos seis meses em segurança, eu realmente acreditei que seria capaz de me esquecer do estado decrépito em que o mundo se encontrava fora dos muros desta cidadezinha.

   Mas afinal, como não poderia me permitir tal sonho? Woodburry era uma comunidade próspera, onde churrascos aos fins de semana, escolas e vizinhos ainda eram uma realidade no presente, e não do passado.

   Ainda assim, quando trouxeram aquelas duas sobreviventes para serem tratadas na enfermaria, o apocalipse  estava estampado em suas faces, de um modo que eu não poderia me permitir continuar em negação.

   — “Doctora”, cuide bem dessas garotonas! Ordens especiais da chefia. — Merle Dixon, o praticamente braço direito do Governador, me orientou dando palmadinhas nada generosas em meu ombro, com um largo sorriso em sua face.

   Particularmente o detestava em seus modos rudes e espalhafatosos — recheado de comentários de moral duvidosa — e tenho quase certeza de que era um sentimento recíproco de sua parte, já que na primeira e única vez em que ele tentara se engraçar para cima de mim, dei-lhe uma grande bofetada. Confesso que até eu me assustei comigo mesma, mas havia algo naquele homem que simplesmente me tirava do sério.

   — Disse que as encontrou à deriva na floresta, certo? — preferi desviar meu foco dele, para o formulário que preenchia com os dados básicos das pacientes. — Com exceção à gripe que a loira contraiu, parecem bem alimentadas, o que já é um alívio para ambas...Qual o nome da outra que estava cuidando dela?

   — Michonne...Um nome naturalmente difícil de se esquecer, ainda mais quando a pessoa em questão porta a porra de uma catana! — ele riu da careta que fiz em relação a seu último palavrão. — É, se eu fosse você tomaria cuidado com ela, “Doctora”. Algo me diz que a arma era mais que um charme, e se duvidar, talvez ela precise de muito menos para fazer estragos. — concluiu de forma zombeteira, com um semblante falsamente temeroso.

   O pior nisso tudo, é que eu não saberia calcular o quanto ele estava certo ou errado em suas suposições.

   Desde que o mundo havia deixado de ser mundo, as pessoas tinham adotado o pior de seus lados para sobreviverem, e ainda que eu tivesse conseguido me preservar deste tipo de comportamento bárbaro, pude ver em primeira mão os reflexos que tais tempos vinham deixando em outros.

   — Pare de atormentá-la, Dixon. Você não tem alguns bebês para assustar pelo caminho? — a voz de Oliver Bennett, meu amigo, me trouxe certo alívio.

   Ele havia sido militar antes do mundo entrar em colapso, e apesar do seu rosto carregar traços dóceis, tinha altura e músculos o suficiente para impor presença onde quer que chegasse. Não que Merle necessariamente o respeitasse por isso, mas as marcas que Oliver costumava deixar em sua masculinidade frágil sempre eram o suficiente para ele tirar sua atenção de mim.

   — Por que eu sempre me esqueço que você e a chica estão juntos, hein?! Pode relaxar, macho alfa, sua garota está à salvo de mim. — Merle riu, deixando a enfermaria sem esquecer de esbarrar contra os ombros de Oliver. — Está na cara que ela está mais interessada no que você tem a oferecer. — concluiu olhando-o de cima a baixo de forma sugestiva.

   — Maldito racista... — Oliver rosnou baixinho, obviamente chateado com as últimas insinuações. Não era à toa, já que era negro, e assim como eu que era latina, não se encaixava na visão deturpada de mundo de Merle Dixon.

   — Os sulistas podem ser conhecidos por suas cortesias, mas definitivamente não prestam muito quando o assunto é diversidade. — suspirei, abrindo meus braços para acolhê-lo. — Aquele cara não merece nossa chateação.

   — Mas talvez merecesse alguns bons socos. — ainda resmungou, mas desta vez sabia que era um comentário mais cômico do que revoltado. Inevitavelmente, eu ri. — Confesso que eu deveria estar rendendo alguém nas cercas, mas vim aqui ver como estava com as forasteiras...Confesso que também não vi o Tyler. — acrescentou, referindo-se ao irmão mais novo.

   — Tyler é adolescente, portanto deve estar fazendo coisas de adolescente em Woodburry, acompanhado daquele “amiguinho” dele... — ri maldosa, me referindo a Henry Hastings, o rapaz por quem Tyler vinha se provando cada vez mais apaixonado.

   — Olha, de todas as coisas que eu esperava ter de enfrentar no apocalipse zumbi, lidar com meu irmãozinho com os hormônios a flor da pele estava entre uma das últimas. Contudo, fico feliz que ele esteja feliz. — confessou, sorrindo aliviado por pelo menos um de nós estar aproveitando algo nesse fim de mundo. Não pude evitar de sentir o mesmo.

   Ainda assim, sabia que não era apenas isto. Havia algo a mais que ele desejava dizer, e por mais que nossos seis meses de amizade pudessem ser considerados míseros, já havia me tornado conhecedora de algumas pequenas peculiaridades em Oliver: até mesmo em seus sorrisos mais largos, ele era capaz de carregar os pensamentos mais preocupados.

   — Mesmo assim...? — o incentivei a se abrir, ainda que uma parte de mim temesse o que viria a frente.

   — ...temos que nos lembrar que o mundo não é mais o mundo. O Governador ainda insiste em não me deixar participar junto das patrulhas do lado de fora, e por mais que pareça algo bobo da minha parte, isso me incomoda. — admitiu, cruzando os braços em frustração. — Se por um lado parece que ele quer nos poupar dessas preocupações, por outro parece até que ele tem critérios bem específicos para escolher aqueles que ele gostaria de ter como seus olhos muros a fora. — sua linha de raciocínio não era lá nenhum exagero. Na verdade, ouso dizer que em partes me arrepiava a lógica em suas observações.

   — Pobres de nós, que temos Merle como nossos olhos para o que acontece fora de Woodburry... — conclui com humor, tentando encerrar aquele assunto, por mais que algo em mim gritasse que aquela não seria a última vez que conversaríamos sobre.

Muddy Waters - The Walking DeadWhere stories live. Discover now