Dia de Treinamento

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Daniela girou a maçaneta da porta e encarou os doze rostos que se voltaram imediatamente para ela. "Bom dia, Doutora", lhe disse a chefe do plantão. "Se dependesse da sua pontualidade, o primeiro paciente já teria morrido." Terceiro dia de residência e Daniela chegava atrasada na troca de turno. O rosto dos enfermeiros da noite traía o desespero pelo momento de passar os casos para quem chegava de manhã.. Havia uma ânsia incontida de ir embora, talvez para dormir um pouco nas suas próprias camas. A maioria, porém, precisava sair correndo para outros trabalhos ou para "bicos" como cuidadores de idosos.

A enfermeira-chefe seguiu: "Leito 2. Felipe, vinte e três anos, masculino. Voltou de uma viagem de surfe na Indonésia há cinco dias. Sintomas gripais há três, internado na Emergência ontem, evoluiu mal, entubado e com instabilidade hemodinâmica." Um enfermeiro mais jovem, visivelmente estressado, continuou: "Leito 3 todo mundo conhece. é a Cleide, técnica da Ressonância. Está em insuficiência respiratória grave, evoluindo mal. O plano é avisar a família." Daniela, então, seguiu o revezamento: "Leito 4. Luís Carlos, quarenta e dois, masculino, décimo dia de UTI, estamos conseguindo manter com máscara mas tomo de tórax ainda muito comprometida." E, nesse ritmo, em aproximadamente meia hora e numa sala pequena, de paredes verdes claro e cheia de avisos nas paredes, informações sobre a doença de vinte e quatro pacientes foram rapidamente compartilhadas.

Finalmente Daniela pode sair daquele ambiente claustrofóbico e adentrou uma antesala reservada para se paramentar. Enquanto higienizava as mãos, e colocava um avental de pano, por baixo de um descartável, luvas, máscara especial, touca e óculos, seus olhos se prendiam no desenho feito pela filha da Cleide, colado meio torto com durex na porta. Era um buquê de flores sobre letras mal desenhadas. "Obrigada por cuidarem da minha mãe." Bastou colocar toda a vestimenta para sentir a vontadezinha de ir ao banheiro. Agora não tinha como. A chefe a esperava do lado de fora, mais eficiente na vestimenta e mais impaciente que Daniela. Juntas visitaram cada um dos pacientes. Ao concluírem, veio a ordem "Bom, agora "bora" ligar para as famílias para dar notícias. Vamos dividir rapidinho aqui." E foram doze telefonemas e doze pedidos. De salvação, de transmissão de mensagens de amor, de pedidos de alívio do sofrimento ou de apenas uma chance de um último toque. Sua fala se repetia. No começo com esforço, no fim, quase decorada: "Infelizmente as notícias não são boas". "Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance". "Vocês precisam se preparar."

A hora do almoço chegou, mas Daniela não comeu. Tinha medo de remover a proteção, pois sabia ser este o momento de maior risco de contaminação. O elástico da máscara marcava fundo suas bochechas. Daniela usou os minutos do intervalo que passou voando para mandar uma mensagem pelo celular: "Oi mãe, tá tudo bem no plantão. Estou adorando a residência. Aprendendo muito. Nunca esqueça que eu te amo." A tarde chegou e a tensão atingiu o nível máximo quando começaram os pedidos de transferência de unidades de pronto atendimento "Tô com três pacientes que, se eu não mandar agora, vão morrer aqui."Daniela podia sentir a desolação na voz do colega. Quis arrancar os equipamentos de proteção, fugir, mudar de planeta, qualquer lugar em que pudesse, finalmente, ir ao banheiro. Nessa hora, uma enfermeira acostumada a trabalhar na Oncologia e deslocada para a UTI, passa por ela e lhe diz "Oh Doutora! Me fala qual é o teu lugar preferido no mundo". Daniela só conseguiu pensar na praia. Era verão. Ela queria sentir o calor, o vento e o mar molhando os pés, e não o ar condicionado gelado da UTI. "Vou te contar um segredo", disse enfermeira. "Quando isso aqui acabar e tu for pra praia, não dou dois dias pra começar a reclamar de tatuíra, de mãe d'água, de esgoto transbordando." Daniela riu. Antes da passagem de plantão, às sete da noite, quando seria ela a secretamente pedir ao universo que os colegas não se atrasassem, Daniela teve mais um aprendizado. Assinou seu primeiro atestado de óbito.

Histórias CurtasWhere stories live. Discover now