Biografia

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Hoje eu acordei já a fim de gritar. Fodam-se os vizinhos. Os humanos botam calopsitas em gaiola, agora que aguentem os guinchos. Eu não sei se isso acontece com todo mundo ou só com quem está ficando velho, mas eu comecei a ter vontade de contar a minha história. E quando quero contar algo eu grito, porque tenho problemas de controle do meu aparelho vocal. Então desculpem os meus desafinos. Eu também tenho coração. Meu nome é Lorena, e ao contrário do Raul Seixas, eu nao nasci há dez mil anos atrás. Eu nasci no fatídico ano de 2018. Até aí, beleza. Brasil batendo panela com pronunciamento na TV, galera de verde e amarelo na rua, treta no jantar de natal, aquele clima legal para se nascer. Meu bico quebrou o primeiro pedacinho da casca do ovo bem no meio da novela das nove. Quando o criador chegou lá eu já tinha nascido. Porque vamos combinar, né? Se tem uma coisa que mulher sabe é parir, se precisar a gente é capaz de parir até a si mesma. Desconfio que quando a gente urra ou guincha, é porque estamos parindo algo em nós. Mais tarde, quando aprendi a me comunicar com as aves da redondeza, descobri que uma mulher em silêncio é que é mau sinal.

Quando eu estava maiorizinha me levaram para uma pet shop de gente rica. Numa gaiola, é claro. Porque muito cedo aprendi que alguns vivem soltos no mundo, outros vivem em gaiolas. E que, se o seu lugar é na gaiola, melhor se resignar. Não adianta fugir ou tentar viver lá fora, a gaiola te suga como fazem os buracos negros. A pet shop era um entra e sai de moças de coque e uniforme lilás e de mulheres com sapatos que faziam barulho a cada pisada. Uma senhora muito loira me achou bonita, fez meia dúzia de perguntas e passou um cartão de crédito. Fui colocada no banco de trás de um carro com ar condicionado gelado demais, de onde eu vi uma moça comendo um cone com uma gororoba cor de morango. E também vi outros carros...muitos outros carros.

A senhora loira abriu uma porta com um código e entrou em um apartamento com cheiro de lavanda. "Celso! Celso, meu filho! Olha o que eu trouxe pra você." Um rapaz com braços e pernas compridos demais para o tamanho do corpo olhou para mim sem entusiasmo. Minha gaiola foi colocada no seu quarto. A noite chegou e ninguém falou comigo. O dia amanheceu e nenhuma brincadeira. Outro dia, outra noite. Dia. Noite. Algumas noites panelas batiam e a moça loira gritava histérica "Capitão! Meu presidente! Agora sim, acabar com a esquerdalha." Calopsitas tem uma vida média de quinze anos. Eu me imaginava quinze anos presa naquele quarto, sem falar com ninguém. Um dia o menino estava com a TV ligada e eu vi que existia gente que vivia desse jeito, presa e sem falar com ninguém num lugar que se chama "solitária". É um lugar para bandidos, mulheres que tentam mudar o mundo e calopsitas.

Eu nunca esqueci a "solitária". A coisa mudou no dia em que a senhora loira de brincos grandes perguntou para a faxineira Luciane se ela não queria me levar de lá. A faxineira era a única pessoa que falava comigo. Ela colocava o dedo indicador dentro da gaiola e eu colocava minha pata em cima do dedo dela. Já era tarde quando ela saiu da casa da senhora loira me levando na gaiola coberta por uma capa preta. Primeiro esperamos muito tempo até um ônibus chegar. Depois descemos em um terminal e pegamos outro ônibus, muito, muito cheio. Desconfio que um homem tentou se encostar na Luciane, porque ela não parava de tentar se mexer.

A casa da Luciane era bem pequena, mas tinha um quintalzinho onde que ela botou a minha gaiola. Eu lembro que gritei de alívio e não consegui conter a surpresa ao ouvir tantas outras aves gorgeando de volta. Tinha canarinhos, papagaios, caturritas...alguns presos, alguns soltos. Finalmente, eu havia sido libertada da solitária. Na casa, moravam além de mim e da Luciane, a mãe dela, Dona Nice e a filha, que se chamava Clara, mas que todo mundo chamava de Clarinha. A Dona Nice trabalhava o dia inteiro como costureira. Isso permitia que ela ficasse em casa tomando conta de Clarinha, enquanto a mãe trabalhava. Além disso, ela podia levar Clarinha às consultas médicas que às vezes demoravam uma vida.

Um dia, quando a Clarinha estava demorando para dormir, eu ouvi a Luciane contar sobre o dia do nascimento dela. A Luciane falou que chegou no hospital com a bolsa estourada: "Você era apressada, Clarinha, queria nascer logo." Quando eu te vi, eu te achei tão linda. Você precisou de umas cutucadas para chorar, mas depois respirou fundo e nunca mais parou. Agora você grita que nem a Lorena." Clarinha deu muitos beijos na mãe, foi acalmando e dormiu. Dona Nice abraçou a filha: "E pensar que o pai está perdendo tudo isso." "Mãe, homem foge até de filho sem deficiência, imagina de filho com Síndrome de Down."

Por causa disso eu passei um tempo então com raiva de homem. Os pássaros machos faziam os cantos de acasalamento, mas eu não respondia. Eu comecei a me perguntar porque diabos todo mundo era mulher naquela casa. Um dia, a Luciane chegou com uma sacola. Depois da janta simples, ela pediu para ter uma conversa séria com a mãe. Dona Nice perguntou: "Mas e a Clarinha?". Luciane nem esperou o fim da pergunta: "Vai junto, mãe. A Clarinha é uma pessoa com deficiência. A gente tem que lutar pelos direitos dela. A menina tem sete anos e nem conseguimos que uma escola aceite ela ainda!"

Na tarde do domingo próximo, as três vestiram camisetas lilases que diziam "Ele não!". Fiquei pensando quem seria ele, talvez o pai da Clarinha. Elas se maquiaram. A Dona Nice colocou até glitter na bochecha. Para elas tudo era festa, mas era uma festa séria ao mesmo tempo. Eu guinchei a minha vontade de ir junto, de estar com aquelas mulheres e de dizer não para os cinco anos de coisas erradas que eu já tinha vivido. Elas chegaram eufóricas, felizes, dizendo coisas como "ninguém solta a mão de ninguém". Eu esperei para ver se elas iam vestir aquelas roupas de novo, mas as camisetas passaram a ser usadas somente em casa, para dormir. Um dia um homem passou na frente da casa, chamou a nós todas de "vagabundas" e gritou que ia nos dar uns tiros.

Uns meses se passaram e o carnaval chegou. A Luciane gostava tanto. Eu via o carnaval pela televisão com a Dona Nice e ficava meio revoltada com as penas que as pessoas pegavam das aves para fazerem fantasias. Falam que é sintético, mas não sei não. Também falam que a minha ração tem vinte e três vitaminas e minerais, mas duvideodó. Alguns dias depois a Luciane ficou doente. Ela não conseguia respirar, não conseguia falar. Estávamos só nós duas na sala quando ela olhou para mim e disse com a voz trêmula: "Loreninha, não posso morrer desse vírus".

Hoje moramos juntas, Dona Nice, Clarinha e eu. Eu queria acabar minha biografia com mais idade, mas algo me diz que envelhecer é um privilégio que só alguns tem. Dona Nice, com sorte, talvez viva mais uns cinco. Clarinha só tem sete anos e ainda não foi à escola.

Histórias CurtasWhere stories live. Discover now