Chocolatão

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Exatos dois meses antes de Jango seguir para seu exílio no Uruguai e o Brasil mergulhar numa duradoura e sangrenta ditadura militar, Virgínia sentia o suor lhe escorrer entre os seios enquanto dirigia o aero willys azul. Alheia às turbulências políticas, o vigor dos seus quarenta anos lhe fizera decidir levar a criançada para uma temporada numa casa alugada na praia. O marido viria apenas nos fins-de-semana, ocupado com o trabalho. A viagem para a praia poderia ser feita entre duas e três horas, mas durou quase cinco. O carro lotado, pelos quatro filhos e dois sobrinhos. A velha estrada de asfalto era um atrativo para as crianças requisitarem paradas para xixi em Gravataí, Glorinha e Santo Antônio da Patrulha, essa já prevista, porque Virgínia planejara um lanche com caldo de cana, mandolate e puxa-puxa para todos.

No carro, os primos Eduardo e Guilherme, este último atendendo, desde que nasceu pelo apelido de Duduco, se espremiam junto à janela direita do banco traseiro. Tinham ambos catorze anos. A primeira vista provocavam certa estranheza, pois Duduco era um guri gordo, com pernas e braços roliços e uma barriga que caía por cima da calça. Aos dois anos, ganhara um concurso de "Robustez Infantil", onde se premiava a criança mais gorda, algo imaginável somente nos anos 50, quando gordura era sinônimo de beleza e saude. Já Eduardo era esquálido, os ossos da costela eram tão visíveis que podiam ser contados um a um. Duduco um dia inventou que a barriga de Eduardo era tão estreita que não havia lugar para nenhum órgão, incluindo o estômago e o intestino, só havia lugar para passar o essencial, e, como os pés de Eduardo tinham veias, o essencial só poderia ser a Aorta. Naquele verão, Eduardo amargou o apelido de Aorta. O apelido, porém, não pegou no resto da família e morreu com o fim do veraneio. Já Guilherme passou a vida adulta, com um sucesso, eu diria, apenas parcial, pedindo para os parentes pararem de lhe chamar de Duduco. As personalidades também não podiam ser mais opostas. Duduco falava alto, contava piadas algo inapropriadas para a idade e distribuía cantadas para as gurias mais velhas. Aorta era quieto, introvertido, mas seguia para cima e para baixo aquele primo que exalava alegria.

A rotina da família era a mesma dos outros veranistas. De manhã, atravessavam a ponte de madeira para pedestres do lado de Imbé para o lado de Tramandaí e se sentavam na orla. Os pequenos, embaixo do guarda-sol, e os maiores, tomando banho de mar ou fazendo castelos de areia. Duduco e Aorta eram da turma do banho de mar. Chegavam na praia, arrancavam as camisetas e corriam para a água. Tanta exposição solar causava queimaduras e descascados progressivos, até que uma hora a pele adquiria o tom cor de cuia que contrastava com o branco da marca do calção de banho.

Naquele ano, Duduco e Aorta tomaram o primeiro banho de mar do veraneio sozinhos às seis da tarde, logo após Virginia estacionar, exausta, o carro na entrada da garagem. Ela achou que os adolescentes estivessem com fome ou cansados, mas o que Virginia não sabia era que os primos tinham feito um pacto secreto ainda antes de saírem de Porto Alegre: tomariam banho de mar todos os dias do veraneio, custasse o que custasse.

No segundo dia, um sábado de sol forte e de mar cheio de mães d'água, chegou, de ônibus, a empregada Josefa. Ela fazia os almoços, lavava a louça e preparava os fartos cafés-da-tarde com pão, manteiga, café com leite e bolos. Duduco ainda complementava a ingestão calórica diária com cartuchos que comprava dos vendedores que passavam emitindo o som característico de um pedaço de metal batendo numa pequena tábua e sonhos fritos, cobertos de açúcar e recheados de creme trazidos religiosamente às três da tarde por um menino de bicicleta, que regulava de idade com o comprador.

A tarde, para a maior parte da família era reservada para uma soneca na rede, para visitas ao açougue ou a fruteira, ou para conversas com amigos e conhecidos. Já Duduco e Aorta gostavam de pescar sardinha sem isca de cima da ponte Imbé-Tramandaí. Um dia chegaram a ir de bicicleta até a lagoa, que fica para lá do Rio Tramandaí, mas acabaram desistindo da pesca, ao perceberem que o chão estava lotado de siris que lhes tentavam morder os pés a toda a hora. Quando estavam muito cansados, liam. Duduco, apesar da personalidade extrovertida e bonachona, era um leitor voraz, e, naquele veraneio, andava particularmente fascinado por Herman Hesse. Já Aorta escolhia a esmo algo da pequena biblioteca da casa. Dessa vez sua distração era um livro de contos chineses. Independente da atividade da tarde, a dupla voltava ao mar e ficava até a hora do jantar, quando o salva-vidas guardava seus equipamentos e ia embora. Às vezes, durante o banho, viam Josefa entrando na beirinha do mar, molhando a barra do vestido e, fazendo a mão de recipiente, molhando os braços e a nuca.

Naquele ano, chegaram as planondas, pequenas pranchas de isopor, que incrementavam o famoso "jacaré". Apenas alguns guris tinham, mas os nossos aqui, ainda gostavam do método tradicional. Esticavam as mãos, posicionavam a cabeça na direção correta e iam parar no raso, com a areia lhes acariciando a barriga. E assim, o veraneio foi passando. Teve banho de mar com o vento sul soprando com tanta força a areia fininha nas canelas, que parecia cortar a pele. Teve banho de mar na chuva, sob um sol de rachar, na bandeira preta, no mar cheio de buracos, no mar sem onda, no dia em que os dedos voltavam envolvidos em algas, mas nada havia preparado os dois guris para o dia em que vou lhes contar.

Eis que na véspera havia caído uma daquelas chuvas torrenciais do janeiro gaúcho. Na manhã, o frio e uma chuva fininha fez com que Duduco e Aorta fossem os únicos a vestir os calções de banho. Ao chegarem à praia, a faixa de areia simplesmente não existia. Ela agora era ocupada pelo mar "chocolatão", conhecido dos locais e dos veranistas. O marrom substituía o outrora verde azulado, a espuma antes prateada, agora era tímida e turva. Ondas gigantescas se formavam na arrebentação e vinham, perdendo a força somente no final da faixa anteriormente ocupada pela areia. Lá, molhavam os pés dos primos, que olhavam atônitos para a paisagem inóspita. Com a mesma força, o repuxo levava a água e tudo o mais que estivesse na areia de volta para as profundezas. O medo era visível no rosto de Duduco e na quase paralisia de Aorta, mas nenhum dos dois se atrevia a propor a alternativa da desistência do outro.

A casinha de salva vidas era o único objeto visível acima das ondas, altiva, elevada pelo apoio de quatro toras de madeira, e separada do mar pelos degraus de uma escada que era usada muito mais para subir do que para descer. Determinados a não quebrarem o pacto, Duduco seguiu a ideia de Aorta, mais inclinado às ciências físicas do que ele. Aproveitaram um momento de repuxo para correr, cada um, para uma das toras que sustentavam a casinha. Naquele dia, tomaram o banho de mar assim, cada um agarrado a um dos troncos de madeira para não serem levados pela violência daquela tormenta de maré alta. Voltaram para casa abraçados e eufóricos, certos de que tinham desafiado e vencido uma força da natureza. Lá chegando, Aorta foi tomar uma ducha para tirar a água salgada do corpo e Duduco foi até a cozinha roubar uns bolinhos de arroz que Josefa fritava para o almoço.

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⏰ Last updated: Oct 14, 2023 ⏰

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