Anaflor

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Se tem uma coisa que me faz rir é ser humano fazendo planos. Meus favoritos são o cara que quer deixar um apartamento para cada filho e depois a prole se arrebenta no judiciário. Também me divirto com aquele que poupa cada centavo para comprar uma casa na praia na qual ele nunca vai pisar. Antes que você lamente o que está acontecendo com a outra menina, preciso lhe dizer que a estou poupando de uma miríade de desapontamentos e frustrações. Começando pelos seus pais. Aff...essa bolha paulistana de bosta está durando tempo demais. Elite branca metida a intelectual. Fala "todes" mas nunca chamou uma pessoa trans pra jantar em casa. Quando comecei, não era assim.

Acredite em mim, eu entendo a sua surpresa e talvez até consiga imaginar a sua dor. Eu preferiria intervir daqui há muito tempo, ou mesmo fazer alguma coisa muito antes, mas infelizmente tenho as mãos atadas. Eu apenas executo e, como todo mundo que trabalha com pouca autonomia e muita pressão por resultado, passo minhas folgas atualizando o Linkedin em busca de alguma oportunidade.

Você em breve vai nascer. Eu adoraria te encontrar lá fora e saber sua opinião sobre Renata e Eduardo, mas não vou poder. Vai demorar mais de oitenta anos para nos vermos de novo e você não vai se lembrar da nossa conversa de hoje. Vai apenas crescer e passar a vida toda com uma sensação esquisita sobre o início da sua vida. Claro que seus pais, que todo mundo vai chamar de Re Pontes e Du Barros, vão te obrigar a fazer terapia desde cedo. No começo você vai ser levada a moças com as mechas do cabelo retocadas em cabeleireiros caros. Você vai encontrá-las em consultórios minúsculos nos metros quadrados mais caros de São Paulo. Já mais velha, você vai procurar por respostas em longos monólogos com senhores grisalhos cuja face você não verá. À frente dos seus olhos, apenas o teto branco, paisagem constante de quem se deita no divã.

Seus pais vão sempre ressaltar o quanto se amam e o quanto você foi planejada. Eles lhe contarão com orgulho sobre a peregrinação a consultórios médicos quando decidiram que era a hora de ter um bebê. Sua mãe vai lhe falar dos rituais de fertilidade praticados em retiros só para mulheres em resorts luxuosos em meio a mata atlântica que ainda sobrevivia em pontos muito específicos da megalópole. Já meio alto de cerveja num almoco de domingo, seu pai vai trazer o assunto dos benefícios do óleo de cannabis que ele aplicava no próprio pênis antes do sexo. Tudo falará apenas do desejo frustrado de constituir uma família, do sorriso amarelo diante das piadas dos amigos sobre o fato de ainda não terem um filho.

Quando você for maiorzinha, sua mãe vai comentar sobre o dia em que, estimulados, ou melhor, pressionados pelas expectativas de ambas as famílias, seus pais foram ao maior especialista em fertilização assistida do país. Seu pai passou o cartão de crédito na maquininha entregue por uma moça morena de uniforme rosa e lilás. A partir dali foi uma odisseia de ultrassonografias, exames, hormônios intra-musculares, enriquecimento espermático, inseminações, implantações, biópsias, injeções intra-citoplasmáticas. Tudo de última geração. Procedimentos que decolavam de congressos americanos para aterrissarem sem escalas na casa antiga transformada em clínica ao lado do Parque do Ibirapuera. O preço? Custava exatamente o valor do desejo de ter um filho...acrescido do custo de um voo ida e volta a Nova Iorque em uma poltrona de primeira classe. Seus pais jamais vão te contar sobre ela.

Por que seus pais passaram por isso? Eu não saberia dizer, estamos falando de decisões de outros departamentos. Só sei que ontem a noite, quando fui buscar uma velhinha num bairro da periferia, num beco escuro, vi um casal saindo de um baile funk. Os hormônios de ambos explodiam na exuberância dos seus dezessete anos. Em pé, com a calcinha atrapalhando, quarenta segundos foram suficientes. E o filho deles não vai estar no meu esquema de visitas por muitas décadas.

Na parede da clínica onde você foi feita, a sacanagem que todo profissional que finge que eu não existo faz: um painel de fotos de grávidas de cachos definidos, de bebês brancos e ricos e de casais com gêmeos e trigêmeos. Na casa do Ibirapuera, havia fotos de gente de todo tipo. Jogadores de futebol, subcelebridades de reality shows, modelos e políticos de sessenta anos revertendo a vasectomia para emprenhar esposas mal saídas da adolescência. Não se fala sobre os bebês que ficam pelo caminho. Nem mesmo dos bem pequenininhos que eu levo em meus braços, o rostinho frio aconchegado nos meus seios vazios.

Mas, querida, esses insucessos não demoveriam seus pais do que havia de ser feito. Eles tinham um projeto e o perseguiram com uma persistência atroz. Se eles se amavam? Difícil dizer... seu pai frequentava um puteiro de luxo com os colegas do banco uma vez ou outra e sua mãe chegou a ter um caso rápido com um professor de tênis. Mas preciso confessar que essa coisa de amor não é comigo, aliás, quanto menos eu me envolvo com essas emocionalidades, melhor.

Sabe, eu vi vocês duas surgirem como dois pequenos aglomerados de células, as duas crescerem, pequenos montinhos surgirem no lugar dos braços e pernas e dois coraçõezinhos do tamanho de um grão de arroz começarem a bater. Foi lindo ver as mãos de vocês se tocarem e presenciar os momentos em que vocês duas dormiam ao mesmo tempo. Seu pai e sua mãe gravando o exame de ultrassom para alimentarem as próprias redes sociais foi um lixo. Mas o ser humano é assim. Nem todo tempo de uma vida é capaz de diminuir a babaquice o suficiente para me provocar algum tipo de arrependimento quando levo alguém.

Amanhã vocês duas vão sair dessa bolha de água. Por favor, não sinta remorso ao perceber que somente você chorará com vigor. Lembre-se que eu a estarei acalentando em meus braços, confortando-a em meu seio e embalando-a na monotonia de canções de ninar. Haverá comoção na sala de parto, como sempre acontece quando há um natimorto.. Lágrimas, gritos, telefonemas e mensagens incessantes. Sua irmã gêmea receberá o nome de Anaflor e será cremada. Sua mãe terá depressão pós-parto e seu pai vai trabalhar demais. Muitos copos de uísque, ansiolíticos e terapia depois, ambos vão se sentir melhor. Viajarão juntos algumas vezes. Levarão você para passar os feriados na praia e lhe matricularão numa escolinha bilíngue. Nunca vão te contar sobre Anaflor. Já totalmente recuperados, começarão a fazer novos planos. E, dessa vez, vou gargalhar de doer a barriga.

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