O Cabelo

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Eu sempre gostei de mudar o cabelo. O ambiente dos salões com gente linda e bem maquiada andando apressada para lá e pra cá sempre me fascinou. Espelhos grandes, luzes que te fazem sentir bonita, e, mais recentemente, cantinhos dedicados exclusivamente à gravação de vídeos para redes sociais.

Minhas memórias mais antigas sobre cabelos são um secador de cabelo modelo antigo que a minha mãe teve durante a minha infância inteira. Era um dispositivo cor-de-rosa muito pesado, no qual era possível ligar uma mangueira que enchia uma touca branca enorme. A tal da touca simulava secadores externos que existiam nos salões para extrair a umidade dos fios enrolados em rolos ou papelotes.

Nessa época, os cabeleireiros não eram celebridades, no máximo eram conhecidos por serem de "nome", e as coisas que se faziam no salão eram retoques nas raízes tingidas, cortes e permanentes para as lisas que sonhavam com cabelos mais volumosos. Minhas memórias de infância não incluem ambientes sofisticados, mas os ditos 'salões de bairro'. Lugares em que encontrávamos vizinhas que eu conhecia desde o nascimento e onde o passamento, além da conversa, era deitar os olhos em revistas de fofoca vencidas ou nas edições de carnaval da revista Manchete. Sempre lhe ofereciam um cafezinho de garrafa térmica, que já vinha adoçado e pelo qual, eu, ainda adolescente, não tinha nenhuma atração.

Na verdade eu nunca gostei do meu cabelo. Nem liso nem crespo, nem fino nem grosso e sempre parecendo ter vida própria. Às vezes eu acordava e ele estava lindo. Outras, eu era a louca dos gatos da vizinhança. Uma vez, ainda na adolescência, cortei meus cabelos bem curtos. A personagem da atriz Luciene Adami na primeira versão da novela Pantanal, usava aquele cabelo. Foi uma mistura de rebeldia, vontade de não se preocupar mais com cabelo e de algo bem pouco elaborado naquele momento: a sensação de que se podia resistir a uma pressão para nos apresentarmos com uma certa estética. O cabelo gerou muitos comentários na escola, eu diria que um certo bullying até. Eu me gostei daquele jeito, mas não consegui encontrar mulheres na Porto Alegre dos anos 80 que tenham me ajudado a sustentar aquela aparência anti-convencional. Acabei deixando crescer de novo.

Durante a minha residência, lá pelo início dos anos 2000, apareceu a escova japonesa. Lembro que vi um cabelo lisérrimo pela primeira vez em uma colega reumatologista e cheguei a pará-la no corredor para perguntar o que era aquilo. Era um processo extremamente agressivo. O produto tinha um cheiro fortíssimo, irritava os olhos, a boca, as mucosas. O cabelo perdia o brilho, mas que ficava liso, ah, isso ficava.

Já formada e ganhando meu próprio dinheiro, passei a usufruir de todo tipo de procedimento. Hidratações, luzes, tinturas, cortes com cabeleireiros renomados, progressivas e em um momento em que estava impaciente com o ritmo de crescimento do cabelo, cheguei a colocar mega-hair. De um dia para o outro, meu cabelo foi do ombro ao meio das costas, cheio, ondulado, uma coisa quase mágica, que seria linda se não fossem as dores excruciantes nas raízes por uns dois ou três dias.

Além dos procedimentos feitos nos profissionais, eu tinha meus xampus preferidos, minha máscara capilar francesa comprada a peso de ouro, ampolas baratinhas anunciadas pela Gisele Bundchen e sprays de brilho. Aos produtos se juntava um arsenal de babyliss, chapinhas e escovas rotativas que ainda ocupa uma gaveta inteira do meu banheiro.

Quando a oncologista me disse que a quimio ia fazer cair o meu cabelo, eu obviamente já sabia dessa informação. Já tinha pesquisado sites de perucas, tutoriais de como amarrar lenços, fotos da careca de pessoas em quimioterapia, mulheres que pintam a careca com henna e tudo o mais que se possa imaginar. Eu assisti aos vídeos de Preta Gil contanto das próteses capilares que ela usa para preencher as falhas. E li tudo sobre os novos métodos de resfriamento da cabeça para fazer com que o remédio usado na quimio não chegue até o bulbo do cabelo.

Eu ainda não raspei meu cabelo, não sei o quanto ele vai cair com essa quimio, nem com a que vai vir depois, mas sei que vai acontecer nos próximos dias. Do que eu vi até agora, meio que me decidi a não usar peruca. Eu quero usar lenços, muitos lenços lindos, coloridos e brasileiros. Muito antes de ter uma filha, cada vez que eu viajava eu comprava um lenço chique em dólares e dizia que  que essa coleção seria parte da minha herança. Pois vou usar minha herança eu mesma, agora, no lugar dos cabelos com os quais eu sempre impliquei. Vou usá-los no lugar dos fios que nunca me pareceram bonitos ou atraentes suficientes, embora, olhando para trás, eu fosse uma morena padrãozinho sem nem pestanejar. Pois agora a vida vai me arrancar os cabelos e vou ser obrigada a descobrir outras formas de me sentir bonita. Não sou gratiluz o suficiente para agradecer à vida por isso, mas pelo menos tenho amigos que vão adorar inventar uns turbantes e amarrações comigo. 

Agora fodeu? A jornada de uma mulher e seu câncer de mamaWhere stories live. Discover now