A motorista do Uber

92 1 0
                                    

Os primeiros dias depois do diagnóstico foram de puro desespero. A gente fica sabendo que está com câncer. Ok, mas qual é a extensão? Ok, não está no figado nem no pulmão. Bom, mas qual é o tipo? Em poucos dias me tornei especialista em coisas como imunohistoquímica, Her-2, triplo negativo, receptores hormonais e todo um vocabulário com o qual eu não tomava contato há muito tempo ou do qual nunca tinha ouvido falar.

Eu fiz a minha biópsia em São Paulo, e, se eu pudesse, faria todo o meu tratamento no Brasil, próximo da minha família. Mas infelizmente, pelo fato da doença já estar presente em um linfonodo da minha axila eu ia precisar de um processo chamado quimioterapia neoadjuvante. Ou seja, a ideia era dar um tratamento no corpo todo, para já matar qualquer célula cancerígena que estivesse cogitando em sair para dar um rolê por aí. E, para isso, eu não tinha mais plano de saúde no Brasil e nem condições de pagar essa etapa do tratamento no particular.

A minha médica do Canadá queria muito a peça, ou seja, o pedacinho de tumor que foi retirado na biópsia. Ela queria fazer testes adicionais. Eu aprendi com ela que cada tumor é um. A gente chama tudo de câncer de mama, mas não existem dois tumores iguais. As características genéticas e biológicas de cada câncer são muito particulares e se a gente pode conhecer melhor o nosso inimigo a gente desenvolve melhores estratégias para combatê-lo.

Acontece que o laboratório em que eu fiz a biopsia em São Paulo teve um problema na logística e não conseguia achar o raio da peça. Eu liguei por vários dias seguidos e me garantiram que a peça estaria na unidade em que eu fiz a coleta e no fim isso nunca aconteceu. Chegou a hora de chamar o meu uber para ir até Guarulhos e eu ainda estava pendurada no telefone falando com a Ouvidoria do laboratório.

Enquanto isso, meu pai desesperado me mandava áudios de Porto Alegre. Colegas médicos tentavam ajudar. Uma advogada se envolveu na situação, que parecia escalar a níveis surreais. Eu mesma me desesperava, pois sabia que esse material poderia definir o meu prognóstico ou o tipo de quimioterapia que eu iria fazer. Cheguei a pensar em não embarcar, mas eu tinha trabalho na segunda-feira.

Eu não tenho noção de quanto tempo levou o trajeto até o aeroporto de Guarulhos, mas imagino que não tenha sido mais do que o normal. Eu cheguei lá com uma mala, uma mochila, uma sacola de exames, o celular na mão e a cara inchada. Quando desci do uber, a motorista apenas me olhou e disse: "Posso te dar um abraço?". Foi longo, apertado, com um encaixe que acontece quando as células cheias de cromossomos X se encontram nas experiências que só as mulheres têm. Depois do abraço a despedida foi apenas um olhar. No aplicativo do celular, nada além do trajeto da corrida e de um nome: Priscila.

Agora fodeu? A jornada de uma mulher e seu câncer de mamaWhere stories live. Discover now