A Oncologista

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Minha oncologista se chama A. É uma mulher preta retinta, alta, mais jovem do que eu e com tranças no cabelo. Tem uma voz de contralto e uma risada fácil, bem diferente da maioria dos médicos que encontro por aqui. Perto dela me sinto pequena, como se, pela primeira vez na vida, a assimetria gigantesca entre o saber (e o poder) de médico e paciente se fizessem presentes.

Ela fala comigo naquela mistura de linguagem coloquial e do inescapável 'mediquês', que sempre acontece quando o paciente é um profissional de saúde. Justifica os procedimentos e as condutas no resultado de grandes estudos, publicados nas melhores revistas. Para ela, meu caso parece ser corriqueiro, o famoso 'feijão com arroz'. Sou jovem, não tenho problemas crônicos de saúde e, ao mesmo tempo, já passei da fase em que manter a capacidade reprodutiva é uma preocupação. Isso facilita um pouco as coisas.

Eu a conheci mesmo antes de vê-la. A colega médica que preencheu o encaminhamento lhe passou meu número. Ainda que sendo um sistema público, A. me ligou com seu vozeirão de cantora de ópera para explicar, confiante, o que ia acontecer até nos escontrarmos e me deu seu contato para qualquer intercorrência. Eu, claro, não abuso do privilégio e só mando mensagens em situações realmente importantes.

Relações entre pessoas se desenvolvem com o tempo. No nosso caso, o tempo são duas semanas. Essa é a periodicidade com a qual nos encontramos para revisar minha situação clínica, verificar se tive efeitos colaterais, atualizar meus exames de sangue e me preparar para o novo ciclo de quimioterapia. Ciclo após ciclo, a consulta funciona quase como uma rede de proteção para quem não tem outra saída a não ser segurar bem forte na barra de um trapézio.

A proximidade que só as relações construídas em tempos difíceis traz fez com que depois de quatro ciclos de quimioterapia e me preparando para o quinto, A. olhasse bem para a minha cara e disesse: "Elisa, de todas as minhas pacientes, não sei se tu és a mais corajosa ou a mais louca. Eu me sento aqui e te olho de crachá, com uma prancheta com a lista dos teus pacientes numa mão e um café na outra e não sei se eu te atendo ou discuto um caso. Tu tens ideia de que estás fazendo um dos regimes mais potentes de quimio?".

Sim, senhoras e senhores, eu tenho ideia. Eu sinto uma náusea e um cansaço permanentes que parece que estou grávida (de gêmeos). Tenho dores nas articulações causadas pelo remédio que impede que meus glóbulos brancos baixem demais. O intestino que era regradinho entrou numa espécie de adolescência rebelde. Meu sono é caótico, meu apetite diminuiu e perdi bastante peso nesses meses.

Indo para o sexto ciclo de oito, penso que vou sentir falta de bater meu ponto quinzenal no seu consultório. Lembro do final da primeira consulta, quando ela fez o questionamento protocolar "Alguma pergunta?", eu perguntei na lata "Eu vou morrer disso?". Ela me disse que não, mas agora, mais de três meses depois do diagnóstico, chego a óbvia conclusão de que tanto a pergunta quanto a resposta são de zero utilidade. No mundo do câncer (porque esse é um mundo à parte), o futuro são probabilidades, mas o que nos acalma são as respostas exatas. Tudo é assim na vida, também, a gente só não consegue pensar nisso, principalmente quando está doente. Para fazer esse trabalho existem as mães e as oncologistas.

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⏰ Last updated: Sep 07, 2023 ⏰

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Agora fodeu? A jornada de uma mulher e seu câncer de mamaWhere stories live. Discover now