Lar

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O pequeno Satoru, aos seus oito anos, já entendia muito bem que deveria ficar em silêncio quando seu pai estava falando. Não importa como estivesse se sentindo inquieto ou como congelava pela presenta do Gojo mais velho, ele permaneceria parado como o troféu gracioso do clã em seus trajes formais e delicados.

Não havia outra alternativa além de aguardar em silêncio. Não haveria uma resposta para as suas perguntas mesmo se tentasse expressa-las.

Ele não entendia o olhar que as ômegas de seu pai estavam usando hoje. Ou porque todos estavam reunidos ali. Entretanto, seus cheiros eram tão distorcidos que coçava o seu nariz.

Era instintivo que quisesse ir até a mãe para ganhar um sorriso gentil. Ela era muito mais quentinha do que o pai e sabia que ainda precisava pedir desculpas pela ultima vez que a desapontou, mas tinha a certeza de que seus guardiões o impediriam se tentasse.

Não entendia porque a mulher estava dormindo em uma hora dessas também, ou como não havia acordado com todo o mal cheiro e barulho. Satoru sentia que devia fazer alguma coisa para acorda-la, afinal, sabia que o papai a puniria por uma afronta como essa.

Apenas o acalmava que o alfa não parecesse particularmente tentado a agressividade agora. Não para com sua gestante e não às suas outras companheiras.

Isso era bom, não gostava de como elas cheiravam quando isso acontecia.

Todas elas permaneciam lá, como objetos de decoração valiosos, mas não importantes. Só sua mãe era um pouco mais valorizada, já que todos a tratavam bem sempre que ele estava por perto.

Exceto, é claro, quando Satoru falhava com alguma coisa. Todos sempre foram covardes demais para impedir o alfa mais velho de machuca-la quando sua joia perfeita não era tão perfeita assim.

Suas próprias iguais eram rancorosas demais com os privilégios associados à existência dele para intervir.

Logo, o pequeno também não gostava de suas caras vazias e olhares inexpressivos. Nunca gostou.

Seus olhos em azul radioativo passaram por todos ainda tentando procurar o propósito de sua presença, mas apenas encontrou o mesmo nada enjoativo de sempre.

Só o trovejar das palavras do pai ocupava o salão tão silencioso de qualquer outra coisa, porém isso era algo de que tentava se desassociar completamente. Nunca conseguiu gostar da voz dele, fazia sua garganta doer em um impulso que não entendia.

Houve um breve momento em que fez contato direto com os olhos julgadores de sua avó. Ela franzia a testa para si como se estivesse ofendida pessoalmente pelo seu desvio de atenção. Isso fez com que se assustasse e olhasse nervosamente para o chão.

Ele sabia que não deveria contraria-los. Mamãe ficava orgulhosa quando se controlava e agia de forma dócil.

Apenas dedicou uma pequena olhada bisbilhoteira para se certificar de que ninguém tentaria se aproximar da mãe por isso. Foi um alívio constatar que não, ninguém faria nada.

Mas começava a incomoda-lo que ela permanecesse lá, deitada e imóvel. Estava tão pálida hoje. Talvez devesse convence-la a tomar um pouco de sol quando essa chatice acabasse.

Faria questão de também arrumar um vaso muito bonito para cada um daqueles arranjos escandalosos de flores que os estranhos e a família havia lhe dado. Sabia que isso a deixaria contente. Mamãe gosta de flores, mas ele não se lembra de mais alguém se dar ao trabalho de presenteá-la com isso antes.

Talvez fosse seu aniversário.

Então era uma ótima ideia importunar os cozinheiros por um bolo, sabia que eles fariam o melhor dos doces se achassem que era para ele. Era uma pena que não conseguisse pensar em nada que sua mãe gostasse, mas tinha certeza que poderia descobrir.

Só precisava acorda-la para isso.

Um cheiro forte de café o distraiu de seu raciocínio. Não conhecia ninguém que cheirasse assim, mas já podia dizer que os tons de queimado definitivamente não combinavam com a bebida.

Satoru piscou uma única vez para o chão antes de se voltar para a pessoa parada na frente dele e foi uma surpresa constar que provavelmente era a pessoa mais bonita que já havia visto em sua vida.

A mulher, de pele escura como chocolate e enormes cabelos encaracolados lhe dirigia um sorriso carinhoso enquanto o olhava com olhos cheios de lágrimas não derramadas. Ela estava triste? Por quê?

Era uma ômega muito diferente. Nunca havia visto nada igual. Quase podia sentir o calor irradiando de sua pele, mesmo que estivesse distante.

Havia um silêncio muito opressor a sua volta agora e isso o atraiu para olhar para seu pai em seguida. Ele havia se calado e encarava as novas aquisições do salão como se alguém houvesse chutado suas bolas.

De repente, o pequeno Gojo gostava mais ainda do estranhos.

Observando melhor, foi possível notar que haviam essas outras pessoas por perto. Estrangeiros em sua totalidade, se o julgamento de seus rostos fosse o suficiente para dizer com certeza.

Mas foi apenas a última pessoa que viu que prendeu completamente sua atenção, fazendo coisas engraçadas com seu estômago. Havia essa criança com os caninos para fora, vigiando seu pai com sua completa atenção enquanto se mantinha entre ele e a omega encantadora. Era a coisa mais estranha que já tinha visto na vida, todos os seus sentidos destacavam ela como centro do universo e ele se sentia um tanto ameaçado, já que até então não havia qualquer outro centro além dele próprio.

O irritava que ela não tenha lhe dignado um único olhar.

O ambiente começou a ficar ainda mais desconfortável, com os alfas do clã emanando feromônios de territorialidade descaradamente. Os outros responderam em igual medida para isso, como se estivesse a um passo de começar uma briga.

Não conseguia entender o porquê, mas as pessoas estavam se movendo rapidamente para envolve-lo agora, tentando colocar alguma distância entre ele e os visitantes.

A ômega a sua frente não moveu um único musculo ou desviou o olhar. Ao mesmo tempo que era sustentada pela presença de algumas figuras amedrontadoras ao fundo, não parecia depender da força de ninguém além da sua própria.

- Satoru-kun? – Ela disse, com uma casualidade tranquila que despertou ainda mais a sua curiosidade. Ninguém por aqui o chamava pelo nome. – Nós todos sentimos muito pela sua perda.

Houve um reverência respeitosa depois, não apenas dela, mas de todos aqueles que a acompanhavam, com exceção, para o seu aborrecimento, da outra criança, que não desviava a atenção de seu pai. Entretanto, mesmo que apreciasse o gesto, o garoto não o entendia, não sabia do que ela estava falando, afinal, não se lembrava de ter perdido alguma coisa.

Também não sabia o que deveria fazer em seguida, então apenas se curvou um pouco e murmurou um breve e baixo “obrigado”.

Toda a tensão presente se dissipou imediatamente. Os alfas relaxaram e se afastaram, voltando para os seus lugares. O pequeno Gojo também não compreendia o porque, mas agora eles estavam até mesmo mais acolhedores, de forma que muitos até repetiam o seu gesto e também se curvavam para aquelas pessoas, embora com mais ênfase do que ele havia feito.

Os estrangeiros por si só eram muito menos desajeitados com a socialização e logo se prontificaram a se misturarem, se juntando ao evento como se fossem os donos legítimos e dando vida ao lugar. Alguns olhares procuraram o rosto de sua joia em busca de orientação e talvez socorro, mas quando encontraram o garoto tranquilo com a situação ao ponto de estar com os lábios levemente repuxados para cima, todos ignoraram os próprios instintos e aceitaram a novidade.

Nenhum deles já havia visto o jovem mestre sorrindo.

O cheiro do salão ficou mais agradável, mas isso não o impediu de ser pego desprevenido quando a ômega levou a mão até sua cabeça e bagunçou seus cabelos.

Satoru se assustou inicialmente e suas presas saíram em alarme, já que ninguém o tocava. Porém, a sensação foi agradável e fez com que ele se sentisse aquecido.

O pequeno som de satisfação que saiu de seu peito era baixo e rouco pelo desuso, mas ainda estava ali. Tanto que quando o carinho acabou e ela se afastou, sua primeira vontade foi reclamar e exigir que a mulher continuasse.

Algo que provavelmente teria feito, se o frio congelante do ambiente não houvesse o paralisado por um momento. 

A reação foi simultânea para todos os demais presentes quando sentiram a mesma coisa e cada um deles ficou alerta, mas sem qualquer capacidade de fazer alguma coisa conforme viam o alfa mais forte presente se aproximar do próprio filho.

Sua expressão era tão gelada quanto a sua existência e dizia para cada um deles como estava furioso pela forma como agiram. O rosnado que saiu de sua boca foi uma ameaça para cada um dos presentes e mesmo aqueles que estavam em um patamar semelhante ao do homem se retraíram em contenção, para não iniciar uma briga ali mesmo.

O que fez com que até a ômega deslumbrante se encolhesse e se afastasse mesmo que fosse contra a sua vontade.

Mas o que aquele alfa não esperava era como o ato irritaria o guardião infantil daquela mulher e que um rosnado nada perigoso, porém muito corajoso, viria em resposta. Exatamente como o som adorável que se esperaria de um filhote.

Seu pai, que nunca foi uma pessoa decente, encarou aquela criança como um desafiante real e se direcionou para ela como se quisesse mesmo ataca-la, embora não tenha o feito. Era um idiota completo tentando intimidar a ridículo demonstração de dominância a sua frente.

A ômega, agora claramente assustada, agarrou o ombro da criança que a acompanhava e a puxou para trás, tentando induzi-la a recuar. O que a criança fez, completamente arrepiada e furiosa, mas fez. Porque alguém que respeitava pediu.

O líder do clã Gojo riu.

Riu como uma coisa distorcida e quebrada cujo som arranhava os tímpanos do próprio filho, fazendo-o querer arranca-los imediatamente. Entretanto, nem mesmo as suas mãos se mexeram para parar o estímulo. Foi induzido a acreditar que deveria suportar, não importa o quanto doesse.

- Mantenha seus animais na coleira.

A garotinha, completamente contrariada, começa a demonstrar respeito para não atrair ainda mais da raiva do adulto. Embora não parecesse muito preocupada consigo mesmo, a consciência de que seu bando estava em risco a alarmou o suficiente para abandonar a sua postura e ceder.

Satoru achou seu gesto tão terrivelmente patético. Desprezava o fato dela desistir por tão pouco e a familiar repugnância sobre aquilo que pessoas fracas fazem para agradarem aqueles que são fortes surgiu com força. Seu humor azedou com desgosto.

E houveram alguns segundos em que ele pensou que essa reação havia sido causada por aquelas duas estranhas, mas bastou um olhar para o rosto de seu pai para entender que não, isso não era sobre elas. Era sobre o homem com aquele sorriso horrível que revelava o seu prazer por atormenta-los, sobre as suas companheiras que nada faziam e sobre cada um ali presente que não tinha a coragem de fazer qualquer coisa.

Irritava-o que a outra criança tenha escolhido se submeter porque essa era a mesma escolha que o jovem Gojo fazia todos os dias por uma figura frágil que o sustentava com migalhas de amor. Ele entendia o quanto isso machucava e não achava justo que mais alguém tivesse que passar pelo mesmo.

Seus olhos radioativos procuraram pela mãe em uma estúpida tentativa de encontrar o conforto de sua gentileza, porque sabia que suportaria se fosse por ela. Se lhe pedisse para suportar.

Mas não houve qualquer movimento em resposta. Não havia se quer um sinal de que ela estivesse prestando atenção nele, então sua coceira continuou.

Continuou e continuou, até que o pai deu mais um passo na direção da outra criança e estendeu a mão como se fosse toca-la tal qual a mulher adulta havia feito com ele. Perceber que aquele era um gesto com o puro intuito de humilhar, e não confortar, fez um estalo soar em sua cabeça.

Seus pés se mexeram sem que os controlasse intencionalmente, de modo que logo ele se percebeu entre a menina e o alfa, com um som rompendo de seu peito que não reconheceu como seu próprio inicialmente.

O pai deu um passo para trás, mostrando o pescoço em submissão em uma fração de segundo que durou até o instante em que ele percebeu o que estava fazendo. Dele exalava o melhor cheiro que já havia sentido vindo desse homem ao longo de sua vida: medo.

Sua postura logo mudou para agressiva quando tentou lutar contra o ridículo posicionamento do filho, mas em nada isso resultou para intimida-lo. O menino continuava parado a sua frente com a força e dominância de um alfa adulto muito poderoso, cujo seus melhores instintos o diziam para evitar.

A visão de tudo isso era ainda mais vergonhosa. Racionalmente falando, não havia nada que um filhote como Satoru pudesse fazer contra ele, mas ninguém ali ousaria apostar nisso agora.

O pequeno por si só viu o ambiente mudando conforme todos ficavam ao seu lado, pelo simples fato de seguirem a força sem contradize-la e, aos poucos, todos começaram a hostilizar líder do clã como se ele fosse o único errado por ali.

Sua defesa começou a vacilar então, porque sabia o que aconteceria depois, sabia exatamente o que ganharia por sua ousadia e seus olhos se desviaram um pouco, em mais uma tentativa de encontrar segurança com a mãe. Mas ela continuava lá, sem qualquer reação.

Começava a incomoda-lo agora que não conseguisse encontrar o cheiro dela em toda essa confusa claustrofóbica de presenças instáveis. Devia pedir para ela começar a evitar os supressores, antes que essa ausência fizesse com que se envolvesse em mais problemas.

Foi nesse momento que sentiu uma mão infantil, um pouco maior do que a sua própria, segurando-o no lugar e entrelaçando seus dedos.

A menina de antes se colocou ao seu lado em suporte, em oferta para lutar junto com ele se precisasse.

Seus olhos estavam completamente focados em seus próprios agora e eles eram de uma imensidão escura que engolia completamente a luz sobrenatural do assombroso azul que enfeitava o seu rosto. Era magnífico.

Seu coração se contraiu em uma batida dolorosa com essa percepção, sinceramente gostaria de ser o alvo daquela atenção por toda a eternidade a partir de agora.

Entretanto, havia um detalhe a mais.

Satoru entendeu que não estava sozinho.

Ah, e com certeza seu pai não se esqueceria disso tão cedo.

(...)

Aos dez anos do Grande, porém pequeno, Gojo Satoru, ele estava começando a perceber que as pessoas esperavam muitas coisas dele. Agora, haviam propósitos martelados em sua cabeça que iam muito além de agradar a própria mãe.

Ele deveria ser um alfa de verdade. Seja lá o que signifique.

Entretanto, com sua moeda de troca anterior morta e sua atual perspicácia de que era temido e ouvido se grunhisse o suficiente, seus tutores consideravam um desafio infernal educa-lo devidamente.

Não ajudava, é claro, que ninguém ali conseguisse acompanhar o seu raciocínio ou cativa-lo o suficiente. Seu interesse por algo novo desaparecia tão rápido quanto vinha e logo seu foco já vagava para qualquer outro lugar.

Não é como se ele desistisse do que deveria aprender, a grande questão é que ele aprendia com uma facilidade e fluidez que ninguém espelhava. Logo, era fácil que sua arrogância se despertasse por isso e que ela fosse completamente justificada.

Ele era o melhor e o único.

Entretanto, essa perfeita constatação e equilíbrio se desfazia toda vez que uma certa garota de olhos escuros aparecia em sua vida. O que era mais frequente do que gostaria, já que se transformava em uma bola de instintos confusos toda vez que a via.

Por favor, o quão difícil poderia ser fazer um amigo? Era terrível que não conseguissem se entender de jeito nenhum e que suas interações tendessem a acabar com os dois rolando no chão, em uma briga furiosa.

Ela era a única pessoa em sua vida que não abaixava a cabeça à sua presença, que muito pelo contrário: o olhava por cima como se fosse superior!

Satoru não era a única pessoa ofendida com sua óbvia blasfêmia, mas os adultos tendiam a se divertir com as suas interações e não geravam nenhum conforto para sua frustração. Todas a perdoavam por seu comportamento arrisco por causa perda de seu bando e não julgavam sua ousadia rebelde, por enquanto.

O ponto é que, em algum momento, os atuais responsáveis por ambos começaram a achar que a relação deles podia ser benéfica e agora o alfa tinha que lidar com seus educadores muito presunçosos em enaltecer como a garota era esperta, inteligente e versátil. Sobre como ele próprio estava ficando para trás.

Provavelmente deveria ter percebido que estava entrando em uma armadilha, mas o pensamento de não alcança-la o perturbava de verdade.

Se ao menos ela pudesse reconhece-lo.

Se ao menos ela se cativasse por ele como todos os outros.

Se ao menos ela não agisse como se ele não significasse nada...

Satoru estava deitado no jardim enquanto pensava sobre isso, escondido o suficiente atrás do tronco de uma árvore. Ele conseguia sentir suas bochechas queimando e se achava um tanto estúpido no momento.

Havia passado por sua cabeça que Himawari, que agora era chamada assim com o único intuito de aborrece-la completamente, tornava-se uma pequena faísca quase apagada quando estava presa ali, longe do contato com qualquer pessoa com a qual se importava. Ela parecia um cachorrinho abandonado por seus donos e era lamentavelmente melancólica por tempo demais, com exceção, é claro, de quando estava sendo incomodada por ele e respondendo a todas as suas provocações com suas próprias reações adoráveis.

Não conseguia faze-la reagir de outra forma.

Então, mesmo que não houvesse qualquer alegria relacionada, o Gojo se auto denominou a luz de sua vida e ela parecia tão constipada toda vez que ouvia isso que ele simplesmente não conseguia parar.

O que leva ao agora. Satoru estava determinado a arrancar todas as suas expressões e, preferencialmente, causar coisas boas também. Então quando o seu aniversário e todas as associações comemorativas vieram, ele achou que seria uma ótima ideia dar o primeiro pedaço de bolo para a garota de uma vez, já que ela tendia a ficar terrivelmente mal-humorada quando estava com fome.

Ele não estava preparado para vê-la olhar para aquilo como algo precioso e corar com um sorrisinho muito satisfeito que não combinava com ela, já que era a perfeita sinalização de timidez.

Não sabia que alguém podia ficar tão feliz com um pedaço de bolo.

O alfa pediu que a guloseima fosse feita mais vezes desde então e repetiu o processo todas as vezes, mas nunca conseguiu o mesmo efeito.

Era tão confuso.

Não era como se pudesse perguntar a alguém sobre o que fazer. Detestava saber que as pessoas ao seu redor apenas se suportavam e não tinham nada dessa instigante satisfação de viver.

Isso lhe arrancou um bufar irritado e a grama na qual suas mãos estavam apoiadas sofreu as consequências.

Ele se sentia tão perdido.

Mas foi então que o cheiro que tanto apreciava começou a se aproximar e sua atenção, de forma involuntária, foi completamente desviada para sua origem. Curiosamente, sua intensidade era maior que o usual, porém continuava a ser algo tão específico e infantil que duvidava que qualquer um dos adultos conseguisse sentir.

Era de se esperar que começaria a ouvir o som de passos despretensiosos que se orgulhava de saber que se tratava de uma cópia do seu próprio andar, mas foi um correr de patas que o contemplou quando prestou atenção.

Seu corpo se moveu antes que pudesse pensar. Não conseguia imaginar um único cenário bom em que algo assim poderia acontecer.

Ele se levantou de seu esconderijo e esperou a garota aparecer, algo que não demorou. Sua Himawari logo estava ali, como uma besta completamente transformada e desengonçada, com os pelos arrepiados e o rabo entre as pernas como se sentisse dor, o que provavelmente era um fato.

Embora tenha desacelerado, ela não hesitou em continuar se aproximando. Satoru sinalizou para que prosseguisse e viesse para ele, mas não era como se houvesse qualquer necessidade de uma permissão entre os dois.

Quando aquela forma animal ficou ao seu lado, não havia mais nada que o impedisse de comtemplar o quanto ela era perfeita. Porém, se quer cogitou dizer isso em voz alta, afinal, a garota já parecia assustada o suficiente sem que receber esse tipo de revelação.

O Gojo se sentou em movimentos lentos e a convidou a se juntar a ele com um tapinha amigável ao seu lado. Sua Himawari, entretanto, parecia ter outras ideias e se aproximou apenas para desabar em seu colo como um peso cansado e morto.

Houve um momento em que o pequeno alfa apenas prendeu a respiração e manteve as mãos para o alto, em choque e incerteza. Relaxando apenas quando um focinho delicado empurrou seu braço e uma lambida carinhosa passou por seus dedos. Uma lufada de ar saiu de seus pulmões então, mais ansioso do que o normal.

- Sabe, se continuar assim, vou pensar que até gosta de mim. – Ele disse em tom de brincadeira, arriscando acariciar levemente o pelo atrás de sua orelha.

A calda peluda da garota se agitou, oferecendo um abano constante e ligeiro. Seus olhos muito escuros encontraram os azuis radioativos que a encaravam.

De alguma forma, Satoru conseguia entender o que ela queria dizer e se coração se aqueceu por isso.

“Sempre.”

Ah, isso o fez tão feliz que ele optou por ignorar o frio arrepiante que tomava o ambiente e a presença que esteve atrás da sua garota desde o momento em que ela se aproximou.

O seu próprio calor estava ali para conforta-los.

(...)

Foi aos doze que o calor veio pela primeira vez. O que teoricamente já era esperado e lhe garantia uma prévia preparação mental do que deveria acontecer.

Algo sobre perder o controle, ficar agressivo e querer enfiar o pau em qualquer buraco disponível.

...

Sinceramente, Satoru não conseguia se conformar muito bem sobre como alguém conseguia achar isso normal, mas era exatamente o que estavam esperando dele. Mesmo que não conseguisse se quer cogitar fazer uma coisa dessas.

Era incontestavelmente desconfortável e a primeira coisa que quis fazer quando percebeu os sinais aparecendo, foi fugir. Estava mais assustado do que motivado a qualquer coisa e ter seu sistema não funcionando corretamente o confundia, assim como o atordoava.

Os alfas da propriedade foram instruídos a se retirar para não correrem o risco de iniciarem uma confusão pelo desafio óbvio que sua existência representava. Os ômegas não acasalados também foram afastados, para não gerarem incidentes inconvenientes com o herdeiro precioso. Enquanto isso, os betas lhe faziam companhia, mas eles eram como uma pedra incômoda pressionando uma ferida.

Não eram corajosos o suficiente para arriscarem desafiar o seu humor, então apenas concluíram seus deveres e escolheram o manter o máximo de distância que conseguiram. Infelizmente para o Gojo, isso significava que ele foi preso em um cômodo isolado e reforçado para suportar o quanto precisasse extravasar nos próximos dias.

Estava tão atordoado pela febre que mal sabia como chegou lá, mas sua primeira reação consciente foi se encolher em uma bola miserável de angústia, em um canto vazio.

Algo estava faltando. Por que estava sozinho? Onde estava ela? Companheira? Companheira? Companheira?

Seu corpo todo doía e ele não conseguia enxergar direito. Parecia que seus órgãos estavam se remodelando em aprimoramento e havia essa compreensão inata em seu ser de que tudo se tornaria ainda mais intenso a partir de agora.

Haviam o deixado no escuro como um golpe de misericórdia, o que agradecia, mas não mudou o fato de que suas retinas latejaram como em uma queimadura recém feita quando alguém teve a audiência de abrir a porta.

Uma pessoa com um cheiro absurdamente enjoativo de cereja entrou, enquanto um beta pronunciava com uma voz forçadamente firme: “Um presente de seu pai, jovem mestre Gojo.”

Ela era uma das ômegas do chefe do clã, a mais jovem. O que não significava que ela não era uma mulher adulta, não mais.

Não costumava  enxerga-la como alguém ruim. Era a única que lhe demonstrava gentileza e não parecia ter qualquer rancor pelo filho perfeito de seu alfa com outra pessoa.

Seus sentidos muito estimulados lhe informaram que seu pescoço estava protegido por uma coleira reforçada, que em teoria impediria uma marca acidental na propriedade de outra pessoa. Essa era a única coisa que protegia seu corpo, com exceção do roupão com que apareceu, mas ele havia sido descartado nos segundos que sucederam a sua entrada, então não contava mais.

Ela se virou de costas para ele, se oferecendo como presa enquanto se abaixava e se colocava de joelhos no chão, expondo o pescoço. Seu aroma indicava satisfação, sendo apenas manchado por tons de excitação. Não conseguia ver o seu rosto daqui, mas conseguia distinguir que a mulher estava fazendo os próprios feromônios se moldarem para atraírem mais o alfa no recinto.

Algumas coisas faziam mais sentido agora. Satoru conseguia sentir o seu sorriso e porra, ele queria vomitar.

A dor em sua garganta indicava que ele estava fazendo isso mesmo.

A ômega parecia querer conforta-lo então, mas apenas a sua existência o deixava enjoado e seu corpo respondeu com um encolher ainda mais sofrido, tentando se fundir em si mesmo como uma bola no meio da bagunça que havia feito. O Gojo sabia que o frio de agora era unicamente sua culpa.

Parecia terrivelmente rude rosnar para ela, então ainda tentava evitar, mas ainda reagiu como um animal ferido ao sentir aquela mão delicada segurando seu ombro e colocou as presas para fora, se arrastando para longe com o coração a mil. Seus grunhidos ofendidos não eram tão ameaçadores quanto gostaria.

Quando a mulher o tocou novamente, ela se antecipou em encurrala-lo com o seu próprio corpo e suas unhas arranharam seu queixo conforme ela o puxava para cima e o forçava a encontrar os seus olhos. Eles brilhavam como um reflexo de seu lobo interno, em um amarelo divertido demais para o tamanho do desconforto que causava.

Satoru fechou os olhos, esperando esperançosamente que a ômega desapareceria se ele desejasse com força o suficiente. Um ponto de distração apareceu para se fixar e o garoto se permitiu concentrar nisso para se distrair, conforme aquelas unhas iam para mais baixo e para mais baixo.

Engraçado, parecia estar chovendo muito lá fora.

Até trovejava.

Trovejava demais.

Ou não. Não é assim que trovões soam.

A porta de sua prisão temporária se abriu e várias vozes exaltadas acompanharam aquela intrusão. Porém, não era como se algum um dos betas pudesse impedir a força da natureza que estava ali.

- EU NÃO ESTOU NEM AI, QUERO MAIS É QUE TODOS VÃO PRA PUTA QUE PARIU!! – A voz que mais apreciava gritou algo que Satoru não entendeu, porque ela não se preocupou em falar em japonês, mas a essência da coisa o agradava.

A tensão de seus serviçais era óbvia, pareciam muito convencidos de que eles começariam a se matar a qualquer momento. Quem quer que tenha sido o responsável por mande-la longe, deve ter sido demitido no instante em que perceberam que houve uma falha em sua missão.

A ômega em cima dele recuou, agora exalando medo. Nunca era algo inteligente se meter na briga de dois alfas. Mesmo que fossem crianças e um deles nem houvesse se apresentado ainda.

Sua Himawari rosnou para a mulher e não esperou para vê-la correr, ela veio diretamente para ele e o abraçou. Respirando fundo em seu pescoço, tal qual ele fazia com ela.

Parecia que apenas agora havia conseguido o oxigênio que precisava desde o início.

- Você parece uma merda. – O Gojo brincou, embora não tivesse muitas forças para isso no momento.

- Eu deveria te apresentar a um espelho. – Ela riu, como se estivesse tudo bem. Ah, ele queria que estivesse tudo bem. – Vem, vou te tirar daqui.

- E como exatamente você pretende fazer isso? Não acho que consigo ficar em pé. – Satoru tentou se levantar para provar o próprio ponto e suas pernas falharam como sabia que aconteceria, não caiu pelo único fato de que seu peso recebeu o suporte que precisava no corpo da amiga.

A garota não o respondeu, apenas o desequilibrou por completo com uma leve rasteira que lhe arrancou um grito muito indigno e o pegou no colo como se ele não pesasse muito. Tal qual uma noiva.

- Um exemplo tão nobre de alfa. – Ela falou em sua orelha, o provocando.

- Cala a boca. – Ele reclamou, mas não escondeu de ninguém o quanto parecia satisfeito. – Estou te perdoando por ser mais alta do que eu só por esse instante.

Sua Himawari apenas riu enquanto o carregava para fora dali para o choque total de todos os outros ocupantes do recinto. Porém ninguém ousou contestar, Satoru conseguia parecer a criatura mais perigosa do mundo para qualquer um que ousasse dar mais um passo para perto dos dois.

Ele foi bem cuidado depois. Com o carinho e o amor que merecia.

Não era um reprodutor premiado e não estava nem perto de estar pronto para qualquer coisa envolvendo sexo.

Muitas pessoas tinham dificuldade em vê-lo como a criança que era e só posso dizer que nunca chegaram perto de tentar entende-lo.

(...)

- Eu acho que amo você.

Satoru mencionou, em um ninho aconchegante e mais adequado, anos depois. Era a sua vez de cuidar de sua companheira.

A ômega, que particularmente parecia uma merda doente, estava encolhida no corpo de seu melhor amigo. Perfeitamente confortável no lugar mais seguro que podia imaginar, principalmente agora que suas alturas estavam se ajustando e ela se tornou muito menor do que seu companheiro.

- Eu sei. – Ela respondeu, com a voz abafada. – Sempre soube.

Seu atual esconderijo não a permitiu ver duas sobrancelhas perfeitamente brancas se erguendo em descrença. Que porra de resposta era essa? Ele havia se preparado muito para dizer essas palavras, isso era um absurdo completo com todos os seus sentimentos expostos!

- Himawaaaaari!! – O alfa a sacudiu, infeliz. – Você deveria dizer que também sou o amor da sua vida e que ficaríamos juntos para sempre! Você sabe, alguma porcaria doce de ômega!

Ela riu e se esforçou para encontrar os seus olhos.

- De “acho que te amo” para “você é o amor da minha vida” tem um abismo enorme! – Seu bom humor aumentou enquanto a careta dele piorava. – Mas você é. E nós ficaremos.

Os feromônios do calor dela pioraram e um suspiro sofrido saiu de sua boca antes de ser devidamente abraçada em resposta. Sentindo prontamente o cheiro amoroso que nunca desapareceu e isso foi o suficiente para deixa-la contente.

- Eu poderia te marcar agora mesmo, sem nenhum arrependimento.

E o Gojo falava sério. Nenhum dos dois poderia dizer que as circunstâncias não os afetava, seus olhos estavam vidrados, quase selvagens e suas presas haviam aparecido no instante em que perceberam a presença um do outro.

Mas eles eram melhores em entender as necessidades um do outro do que qualquer outra pessoa e a preciosidade do clã sabia que ela estava mais feliz agora do que estaria com outro tipo de reação inicial. Essas coisas tendiam a ser mais assustadoras do que prazerosas, principalmente em uma primeira vez, então sim, tudo estava perfeito. Não seria ele a pedir por qualquer coisa a mais, não agora. Mesmo que quisesse muito.

- Eu quero que você faça isso. – Ela sussurrou, baixinho. Quase envergonhada.

Ehh??

Satoru conseguiu sentir a sua mente virando geleia.

- Não acho que uma mordida de acasalamento funcione sem todo o resto, mas parece bom mesmo assim!

O alfa se dobrou para alcançar seu pescoço, que foi exposto espontaneamente em seguida, mais como um reflexo automático do que um ato pensado. Seus lábios e seus dentes começaram a brincar com a ideia de colori-la como uma obra de arte, mas uma mão fraca em seu peito, o empurrando para longe, o parou.

Satoru se afastou sem nenhum problema, embora tenha prolongado o contato para além de uma fuga imediata e olhou naqueles olhos tão escuros quanto um buraco negro, procurando entender seus desejos. O cheiro de satisfação no ar era quase embriagador.

- Não, seu bobo. – Ela riu de novo, se mantendo muito perto, como se a ideia de afasta-lo completamente fosse insuportável. – A mordida de verdade, com todo o resto. Eu quero isso.

Eles se olharam durante todos os instantes em que o alfa precisou para entender do que exatamente ela está a falando. Então seu corpo se ergueu rápido de mais, repentinamente agitado e muito preparado.

Seu sangue se moveu tão depressa que ele ficou um tanto tonto.

- Tem certeza? – Não pode deixar de perguntar e não, isso não era sobre a mordida.

- Tenho. – A ômega parecia muito feliz em vê-lo reagir assim. – Você já me provou o suficiente sobre como estou em boas mãos. Eu quero você. Amo você.

Satoru não tinha certeza se ela estava correta com a própria afirmação agora, já que ele nem sentia mais as próprias mãos e sabia que estava tremendo. Mas, de certo modo, conseguia ver que essa era uma ansiedade da qual os dois compartilhavam.

Não fazia a mais vaga ideia de que era possível querer algo tanto assim.

- Não vou te soltar nunca mais. – Ele prometeu, em um rosnado possessivo, cheio de desejo.

- É exatamente com isso que eu estou contando!

Mas bem, já sabemos que Gojo Satoru não era muito bom em manter promessas e tende a se esquecer das mais importantes.

Entretanto, ele está melhorando. Não é de seu costume cometer os mesmos erros duas vezes.


《...》

A autora se encontra em estado de negação da realidade, atualizações provavelmente se tornaram instáveis.

Dor, muita dor.







Jujutsu Kaisen - InadequadaOnde histórias criam vida. Descubra agora