Capítulo 1

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Olívia e eu nos vimos pela primeira vez há cerca de três anos. Papai e a mãe de Oli, Ruth, trabalhavam no mesmo hospital e, entre um plantão e outro, acabaram se envolvendo.
 
Dois médicos, duas filhas e o sonho mútuo de reconstruírem suas famílias. "Queremos que sejam irmãs" foi o que ambos disseram no jantar constrangedor onde anunciaram que nos mudaríamos para a mesma casa. Lembro-me do olhar confuso de Olívia colidir com o meu. De suas sobrancelhas erguidas estampando a mesma pergunta que havia em meu próprio semblante: "Que porra é essa?"
 
E eu não disse nada, porque estava tão chocada quanto ela.
 
Desde a morte prematura de minha mãe, eu estava habituada à vida tranquila e pacata ao lado de meu pai superocupado. Ele me fazia companhia sempre que podia, me ajudava nos deveres de casa, comprava guloseimas para me animar quando tinha que passar a noite no plantão e, na maior parte do tempo, era o melhor pai que uma garota poderia ter.
 
Então vieram Ruth e Olívia, dois cachorros e um monte de móveis e objetos de decoração que amontoaram nosso apartamento por alguns meses até nos mudarmos para uma casa maior. O quarto de Olívia foi instalado ao lado do meu, suas fotos de infância expostas ao lado das minhas e seus objetos pessoais vez ou outra apareciam por acidente em meio às minhas coisas.
 
Demoramos cerca de três meses para aprendermos a nos comunicar. No início, Olívia era reservada e quietinha, e na maioria das vezes só falava comigo quando precisava pedir algo. Eu era um pouco mais comunicativa, sempre gostei de jogar conversa fora, mas demorou um tempo até que eu me acostumasse com o contraste entre nossos hábitos e gostos pessoais.
 
Um exemplo?
 
Olívia sempre acorda às 06:00. Eu só consigo abrir os olhos depois das 07:30. Ela toma café da manhã enquanto lê um livro. Eu sou a "criança do tablet" e só consigo fazer minhas refeições assistindo a vídeos no YouTube (ou ouvindo meu podcast favorito "Lésbica & Ansiosa" no Spotify). Ela faz faculdade de psicologia. Eu estou no segundo período de medicina. Ela gosta de filmes de romance e suspense. Não que eu desgoste de romance, mas sempre preferi filmes de ação e aventura. Ela não gosta de conflitos, principalmente com sua mãe. Eu e meu pai discutimos a cada oportunidade pelos motivos mais idiotas. Ela sempre acorda de bom humor. Antes das 09:00 eu me recuso a ter sequer uma conversa que exija mais que 5 palavras.
 
Mas, mesmo com tantas diferenças, no fim das contas Olívia e eu aprendemos a nos aceitar. Depois, aprendemos a conviver. Em seguida, aprendemos a gostar da companhia uma da outra. E, por último, aprendemos a fazer tudo juntas porque simplesmente nos tornamos inseparáveis em todos os sentidos.
 
Mas nunca nos vimos como irmãs.
 
Nossos pais não sabiam disso. Na cabeça deles, suas filhas compartilhavam uma espécie de laço fraterno que excedia o vínculo sanguíneo. Eles sequer consideravam a possibilidade de que o fato de enxergarem a si mesmos como um casal não nos obrigava a nos ver como irmãs; não pareciam pensar que, depois de tantos anos sendo filhas únicas, Olívia e eu teríamos dificuldade em entender o que significava ter alguém da nossa idade que de repente deveríamos chamar de irmã.
 
Nós tentamos, na verdade. Tentei chamá-la de Sis, como abreviação para "Sister", mas Olívia fez uma careta e disse que preferia que eu a chamasse somente de "Oli". Tentei implicar com ela, como ouvi dizer que os irmãos fazem, mas Olívia ficou chateada em todas as vezes e parou de falar comigo porque não entendia de onde vinha aquilo. Uma vez, ela tentou me apresentar para sua amiga como "meia-irmã" e começou a gaguejar como se estivesse contando uma mentira. No fim das contas, só disse que meu nome era Hellen e eu era a filha de seu padrasto.
 
Então, aos poucos, entendi que esse tipo de laço não pode ser forçado. Três anos de convívio e eu ainda a via da mesma maneira: Olívia era filha da esposa de meu pai e a garota com quem eu compartilhava um teto. Não era e nem jamais seria minha irmã ou nada do tipo.
 
E eu seria uma completa hipócrita se dissesse que constatar isso há algum tempo não me deixou aliviada. Entretanto, também me deixou perturbada – se o amor que compartilhávamos não era amor de irmãs, de que outra maneira eu poderia amá-la? De que outra maneira Olívia poderia me amar?
 
Olho para o texto do artigo e o leio mais uma vez. 
 
"O amor é, a princípio, situado do lado da pulsão sexual, enraizando-se no narcisismo primário."
 
Estou suspirando para o teto do meu quarto, perguntando-me o que diabos eu ia fazer a respeito daquilo, quando ouço o som da porta sendo aberta, seguido de passos suaves entrando no meu cômodo.
 
Olívia caminha descalça pelo piso até minha cama e se joga de braços abertos sobre meus lençóis brancos, os olhos azuis fixos na luminária de Saturno.
 
— Não aguento mais a minha mãe.
 
Reclamando da mãe? Isso é raro. De repente, toda minha angústia se foi. Sou tomada por uma alegria genuína ao vê-la usando um short fino e soltinho e um cropped de flanela que um dia foi meu. Está sem sutiã e seus mamilos estão marcados, mas, embora a imagem perturbe minha sanidade, não se trata somente disso. Sinto alegria ao perceber que Olívia está ali, comigo, em meu quarto. Que me procura quando precisa.
 
Sorrio para o computador e continuo a deslizar o mouse pelo texto sem realmente lê-lo.
 
— O que a tia Ruth fez dessa vez?
 
Olívia ergue a cabeça ligeiramente para me olhar.
 
— Pegou no meu pé a tarde toda. Nada que o tio Otávio já não tenha feito com você.
 
Deixo uma gargalhada escapar.
 
— Meu pai feriu cerca de trinta e dois dos meus direitos individuais só essa semana.
 
Ela suspira e volta a encarar o teto.
 
— Bem, seu pai não está tentando te convencer a trocar de curso toda vez que esbarra com você pela casa.
 
Giro a cadeira de rodinhas com a ponta dos pés até ficar de frente para Olívia, vendo-a confortavelmente espalhada em minha cama. Ela não olha para mim, mas eu não posso dizer o mesmo. Deslizo meu olhar por suas pernas nuas, suas unhas pintadas de vermelho, seus braços abertos, o cabelo ruivo preso em um coque meio desfeito com algumas mechas dispersas em meus lençóis...
 
Linda. Tão linda.
 
— Tia Ruth fez isso? — Tenho vontade de acrescentar: "Quer que eu dê um chute nela por te fazer sofrer?" Mas obviamente não digo.
 
Olívia apoia o antebraço sobre os olhos.
 
— Minha mãe acha que sou uma extensão dela. Ela tem essa mania horrível de projetar em mim os sonhos que tem pra si mesma. Parece incapaz de aceitar que eu sou perfeitamente apta a decidir o que é melhor pra mim. O que vai me fazer feliz.
 
Umedeço os lábios e engulo.
 
O que te faria feliz?
 
— Sinto muito, Oli. Quer que eu fale com ela?
 
Olívia balança a cabeça.
 
— Não se incomode. Vou dar um jeito de convencer minha mãe de que não nasci para a medicina como ela, ou seu pai. Ou você. Não é e nem jamais foi o meu sonho. Vou ser psicóloga, como meu pai é.
 
Um nó invisível amarra meu peito. O pai de Olívia mora na Itália há mais de oito anos e só vem para o Brasil duas vezes ao ano, com a única intenção de vê-la. Eu só o vi um punhado de vezes e não sei muito sobre ele além do que ela contou, mas aparentemente é um homem maravilhoso que faz tudo o que pode para ver a filha feliz. Seu único "defeito", segundo a própria Olívia, foi ter se apaixonado por outro homem enquanto ele e Ruth ainda eram casados.
 
Não que Olívia se ressentisse por seu pai ter se descoberto bissexual já perto dos quarenta anos, mas acho que há certa frustração pelo modo como essa descoberta afetou sua vida quando ela ainda era tão jovem.
 
— Posso pedir para o meu pai conversar com ela. — Sugiro. — Eles geralmente ouvem um ao outro.
 
Oli enche as bochechas de ar e solta lentamente.
 
— Talvez. Mas espere um pouco até que eu fale com ela primeiro. Minha mãe precisa aprender a validar as coisas que eu quero pra mim sem que outra pessoa cuja opinião ela valoriza mais que a minha precise interferir.
 
Assinto e me levanto da cadeira de rodinhas onde estive sentada pelas últimas duas horas. De jeito nenhum eu conseguiria estudar pelo resto daquela tarde.
 
Oli, cujos olhos estavam fechados, abre um único olho azul e observa enquanto caminho descalça até a cama.
 
— Esse vestido é meu. — Constata ela, estreitando aquele único olho para o vestido de tricô que misteriosamente apareceu no meu closet depois que as roupas voltaram da lavanderia dois dias antes.
 
Olho para baixo e deslizo os dedos pelo tecido off-white, deixando escapar um suspiro falsamente apaixonado.
 
— Me sinto uma noivinha virgem com essa belezinha em meu corpo.
 
Oli gargalha enquanto me jogo na cama ao seu lado. Ela abre um pouco de espaço para que ambas possamos nos deitar e, juntas, observamos minha luminária de Saturno cintilando no teto.
 
— Me lembre de roubar algo seu em troca. — Comenta, depois de um tempo em silêncio.
 
Sorrio.
 
— Acho que tenho algumas coisas que podem compensar o seu réu primário.
 
— Esplêndido. Faz meses que quero roubar seu carro.
 
Cutuco suas costelas com o dedo e ela se encolhe, rindo.
 
— Deixe de ser uma meliantezinha e roube algo mais barato.
 
— Hum. Você tem um MacBook novinho que quase nunca usa. Posso perder meu réu primário por ele.
 
— Nem pensar. Foi um presente do meu pai. Ele vai descobrir que eu deixei você roubar e provavelmente vai me deserdar por ser uma ingrata.
 
— Por que você não usa?
 
Dou de ombros.
 
— Meu computador ainda me serve bem.
 
— Justo. — Concorda ela. Depois, faz um barulho pensativo. — Então... vejamos. O que a Hellen tem que eu não tenho e quero muito...?
 
— Um par de brincos escoceses? — Sugiro.
 
— Muito medíocre. — Rebate ela, ainda contemplativa.
 
— Uma jaqueta de couro da Lana Del Rey?
 
— Tentador, mas previsível.
 
— Uma jabuti fêmea chamada Feiticeira?
 
— Me lembre de fazer uma denúncia anônima ao IBAMA sobre maus-tratos.
 
— Hum... Talvez um relógio de parede do Patolino?
 
— Brega. Se fosse uma Calça de Shopping poderíamos negociar, mas um relógio...
 
— Já sei! — Estou completamente empolgada quando digo: — O Douglas.
 
Oli faz uma careta.
 
— Quem é Douglas e por que eu nunca ouvi falar dele?
 
Sem dizer nada, fico de pé, corro até meu closet e volto para o quarto com o travesseiro gigante que me faz companhia durante as noites.
 
— Oli, conheça o Douglas.
 
Vejo o exato momento em que a fascinação a atinge como um chute no estômago.
 
Lentamente, Olívia desliza os olhos azuis por todo o comprimento de um metro e meio do meu travesseiro favorito. Um brilho felino pisca em seu semblante e um sorriso começa a se espalhar por seu rosto. Suas covinhas aparecem e tenho certeza de que ela vai se apaixonar em 3, 2...
 
— Não era bem o que eu estava pensando, mas...
 
Jogo o travesseiro para ela e caio de volta na cama, esparramando-me ao seu lado.
 
— É todo seu.
 
Sem hesitar, Olívia o abraça como uma mãe galinha protegendo os pintinhos.
 
— Eu já o amo tanto.
 
Meu sorriso e minha alegria ao vê-la tão feliz não têm tamanho.
 
Depois disso, a tarde se esvai enquanto conversamos e, quando as palavras cessam, apenas aproveitamos o silêncio confortável do meu quarto. A janela está aberta e uma brisa fresca e deliciosa serpenteia pelo cômodo e balança as cortinas como se fossem fantasmas. Uma paz atípica e entorpecente toma meus sentidos até me deixar sonolenta. Olívia parece sentir o mesmo, pois, minutos depois, coloca Douglas de lado e se move pela cama até que seu corpo esteja aninhado ao meu. O movimento é espontâneo, impensado, inconsciente. Mas não me importo nenhum pouco. Deslizo minha mão por sua cintura e a afago enquanto ela se vira, enfia o rosto em meus cachos e fecha os olhos para dormir.
 
Seus braços estão encolhidos entre nossos corações pulsantes. O calor de suas curvas suaves me aquece em todos os pontos que nossos corpos se tocam. As batidas em meu peito se igualam à sua respiração ritmada. O cheiro único de sua pele acaricia minhas narinas e acalma o caos em minha mente.
 
Fecho os olhos e, com tudo que tenho em meu coração, lanço uma súplica ao universo para que momentos como aquele jamais tenham fim.
 
Para que Olívia e eu jamais tenhamos um fim.
 
Mesmo que aquilo seja errado.

Meu Pecado Fraternal - Conto rápidoWhere stories live. Discover now