Ligação inesperada.

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03 DE ABRIL DE 1994.


  Do outro lado do país, inocente do que havia ocorrido, certa ruiva tentava ler pela décima vez a mesma página do livro, bufando irritada e o deixando de lado. Nada a fazia esquecer da discussão que tivera com Cobain, o que a deixava inquieta. Não haviam se falado desde então, somente tendo ideia de que muito provavelmente, o homem estaria na reabilitação. Não aguentava mais guardar segredo, guardar do ex a notícia que seria pai. Sentia-se pior a cada dia que perpetuava a mentira, indo contra suas convicções. Olhou para o relógio e constatou que era quase meia-noite, hora maravilhosa para o estômago roncar de fome. Riu no silêncio do porão, mesmo que uma aflição lhe coçasse a alma. Saiu da cama e resignada com os horários malucos que a gravidez impunha, se encaminhou até a cozinha para um lanchinho, os remédios para náusea funcionando bem, ajudando a manter a comida onde deveria estar. Com passos vagarosos, quase rastejantes, subiu as escadas e venceu o trajeto preguiçoso. Procurou pelas embalagens de cereais, enchendo um pote fundo com eles e leite gelado. O sono não viria tão cedo pelo jeito, decidindo assistir um pouco de tv na esperança de se distrair, desligar a mente por poucos minutos. Praticamente se jogou no grande sofá, pegando o controle e ligando o aparelho. Os Simpsons passavam na telinha como um remédio momentâneo, capaz de fazê-la esquecer do mundo, de Kurt. Ou era isso o que pensava. Memórias de quando ficava assistindo com ele, acariciando os cabelos macios, rindo dos comentários ácidos, dos abraços e cobertores compartilhados. Era uma merda relembrar cada instante precioso, a saudade batendo tão forte quanto possível. Suspirou profundamente, segurando o choro. Se não fosse a capacidade de reprimir cada soluço, estaria ferrada. Sacudiu a cabeça, se negando a ceder. Mudou de canal, parando num filme qualquer e agradecendo tratar-se de algo não vinculativo. Basicamente encarou o televisor, fingindo dar total atenção para a história, tomando um susto ao ouvir o telefone tocar. Quem ligaria uma hora dessas? Se levantou meio contrariada, rumando ao objeto e atendendo-o, temerosa daquilo ter acordado a casa toda.
  -  Alô? – Se pronunciou, desconfiada.
  - Mad? – Uma voz feminina soou do outro lado, muito familiar.
  - Kim?! – A ruiva rebateu, surpresa estampando sua face. A mente trabalhava rápido, ponderando as razões e probabilidades do ocorrido. Receber uma ligação da ex cunhada, num horário tão fora do normal, logo após todo o lance da intervenção.
   - É tão bom falar com você, Mad! – Kimberly despejou – Desculpa ligar assim, só que aproveitei o Krist ter ido tomar banho. – Continuou, quase se atropelando nas palavras.
  - Hey, se acalme. – A guitarrista pediu, tentando ser racional. - Aconteceu algo com o Don, não foi? - Jogou a pergunta de modo direto.
  - Ele sumiu, Mad. – A outra explicou, urgência nítida. - Ele acabou indo para a clínica anteontem, como sabe. Só que ontem pulou o muro e desapareceu. Ficamos atrás dele pela cidade, mas não deu em nada. Não queríamos te preocupar, só que já faz mais de um dia e nada. Não sei o que fazer ou o que pensar. Iríamos te informar amanhã de manhã, porém, isso não é mais alguma rebeldia dele. É sério desta vez. Algo dentro de mim grita que não o verei novamente. - Desabafou.
  - Meu Deus... – Madison resmungou, ainda mantendo o controle emocional, mas sentindo o corpo todo tremer. – Tem certeza que procuraram em todos os lugares? – Sabia que parecia idiota fazendo aquela pergunta.
  - Sim. – Kim confirmou, sempre alerta. – Krist, Nina e eu ficamos com um lado da cidade, Dave com o outro. – Prosseguiu com a explanação. – Amanhã continuaremos as buscas. Courtney até contratou um detetive.
  - Obrigada por avisar, Kim. – A ruiva agradeceu, a certeza atingindo novamente seu coração. Sem precisar mencionar, sabia que a polícia ainda não havia sido envolvida, muito provavelmente por conta da visibilidade que o ocorrido traria e do tempo que o ex sumira.
  - Sei que Krist faria logo que pudesse, no entanto, estão tratando como se fosse um sumiço passageiro, que logo o Don irá aparecer. Não querem te preocupar com besteiras, trazer estresse e ele voltar como se nada tivesse acontecido. Não sei dizer, só que não consegui esperar. Você tem de estar aqui. É a única que pode trazer meu irmão de volta, onde quer que esteja. – Despejou o que sentia, fungando alto. – Dessa vez eu sei que Kurt não voltará.
  - Pego o primeiro voo para Seattle. – Madison informou sem pestanejar. – Nos vemos daqui algumas horas. – Se despediu, apressada em resolver as coisas. – Tente ficar calma, Kim. Vamos encontrar o Don. Eu prometo.
  - Ok. – Kimberly assentiu, um tanto quanto aliviada. – Valeu mesmo, Mad! E sinto muito estar pedindo isso a você, mas... – Não conseguiu continuar.
  - Não. Fez o certo. É meu dever estar aí. – A jovem deixou claro. – Kim, estou... – Iria revelar seu segredo, exausta de guardá-lo. Que fosse tudo pra merda, não ocultaria a gestação de ninguém. Talvez, se tivesse contado desde o início, nada daquilo estivesse acontecendo.
  - Eu sei. – A loira retrucou, amável. – E estou feliz que seja você. – Afirmou orgulhosa, sorrindo no meio de tanto caos.
  - Krist. – Mad ralhou.
  - Ele não teve culpa. Fui enxerida e ouvi uma conversa particular. – A mulher defendeu o rapaz alto. – Praticamente o obriguei a abrir o bico.
  - Tudo bem. – A ruiva deu de ombros. – Fico feliz que já saiba e espero que entenda meus motivos.
  - Fez o que tinha de fazer. Nunca a julgaria por isso. – Kimberly confortou-a, sincera em sua opinião. – O grandão tá vindo. – Proferiu baixo. – Até logo, Mad. – Concluiu, encerrando a chamada e deixando a outra num estado meio consternado.
  Madison colocou o aparelho no gancho, soltando o ar que não sabia prender. Deu-se uns segundos para processar toda a conversa, sofrendo uma leve tontura. Mal reparou na figura materna na ponta da escada, a expressão indecifrável.
  - Irei com você. - Viviane declarou, a voz mansa assustando a filha mais velha.
  - Puta que pariu! Não faz mais isso! Quase me matou do coração! – A jovem fez um esforço para não gritar, as mãos no peito num ato dramático. – Há quanto tempo tá aí, hein? – Perguntou, cerrando os olhos acusadoramente.
  - O suficiente. – Foi a resposta da matriarca.
  - Agradeço, mãe. De verdade. – A ruiva começou, sentindo um forte cansaço. - Mas preciso ir sozinha. Resolver isso de uma vez por todas.
   – Está grávida. Não deixarei que atravesse o país assim. Ainda mais no seu estado emocional. - A mais velha acusou, arqueando a sobrancelha.
  – Mãe… - Madison não tinha tempo para aquela discussão. - … Sei que não estou no meu melhor humor, mas sou forte. Tenho de ser forte. Sei também que não sou totalmente culpada do que está acontecendo, como também não sou a salvadora de Kurt. Só que o amo. O amo e estar longe dele me mata, me machuca. Mesmo que não fiquemos juntos, que o laço que nos une agora seja o bebê, não me importa. O ver bem já me conforta. Preciso e tenho de estar lá, o procurar, tentar. - Falou o que o coração mandava, sabendo que a mãe entenderia.
  – Eu sei. - Viviane concordou, os olhos brilhantes pelas lágrimas acumuladas. A filha estava certa, já era adulta e consciente dos próprios atos. - Só se cuide, está bem? E saiba que estarei aqui para vocês três. - Completou, se referindo a criança que crescia no ventre da ruiva, a própria Mad e a Kurt. - Sempre.
  – Nunca duvidei disso, mãe. Nunca duvidei.

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  As vozes haviam desaparecido há muito tempo. A porta do porão aberta, sendo a prova de que estiveram ali. Ponderou se valia a pena sair do esconderijo, contudo, o estômago protestou outra vez, fazendo-o quase bufar em resignação. Rastejou detrás do velho sofá que ficava no cômodo, a escuridão quase total o acolhendo como um filho amado. Colocou-se em pé, repassando como havia apagado a tarde inteira e um pouco depois de acordar, ouvir a movimentação no andar de cima. Parecia ter sido recente, porém, não foi. Quanto tempo ficara escondido? Incontáveis horas, sabia. Não o encontraram, como já havia premeditado. Talvez, pensassem que deveria estar por aí, na casa de algum traficante, se entorpecendo irresponsavelmente, sem consideração alguma com a preocupação alheia. Deixaria que fosse o veredito geral, muito mais simples que a verdade. Se compadeceu por mínimos segundos dos amigos e da irmã, a culpa o assolando por dentro e se transformando em raiva, ressentimento. Eles não se importavam de verdade, ou teriam tentado um pouco mais. Balançou a cabeça pra lá e cá, espantando aqueles pensamentos ridículos. Tontura. Cambaleou alguns passos para trás, caindo sentado no sofá e sem forças para se reerguer, decidiu continuar ali, a fome que se fodesse. Enfiou a mão no casaco e retirou o vidro de comprimidos, jogando os que restavam na mão e engolindo como de praxe. Fechou os olhos e esperou, o silêncio da noite apenas o fazendo se sentir pior, vazio. "Está acabando" pensou, exausto por respirar mais um dia e esperançoso que logo não mais existiria.
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04 DE ABRIL DE 1994.


    Era uma manhã cinza, tão comum em Seattle. Madison desceu do táxi com a pouca bagagem que trazia, a mesma que levara para Salem, com exceção de algumas aquisições e presentes para o bebê. Bocejou cansada, o voo longo não ajudando em nada. Arrastou as malas pela calçada e parou frente a porta de madeira escura, batendo algumas vezes. Não demorou e um rapaz muito alto, os cabelos bagunçados e a cara inchada pelo sono, atendeu, os olhos se arregalando em surpresa.
  – Mad?! - A voz de Krist saiu mais grave que o habitual, fazendo a ruiva rir baixo.
  – Olá, grandão. Posso entrar? - Ela saudou, sorrindo amavelmente.
  – Meu Deus! Claro que pode! - O moreno parecia constrangido, dando passagem para a amiga e permanecendo parado digerindo o que acabara de acontecer. - Mas como?!
  – Fui eu. - Kim descia as escadas, passando as mãos pelos cabelos claros como os de Kurt. - Liguei pra Mad ontem a noite, enquanto você tomava banho. - Explicou, indo abraçar a ex cunhada. - E aí, o voo foi ok? Está tudo bem?
  – Está sim. - Madison afirmou, retribuindo o gesto. - Só um pouco cansada, na verdade. Nada que atrapalhe. - Continuou, quando quebraram contato.
  – Mad… - Novoselic iria iniciar suas justificativas, pois, quebrara o combinado de manter a guitarrista informada dos ocorridos com Cobain.
  – Não. - A jovem interrompeu, abrindo mais um sorriso. - Não precisa. Não estou chateada nem nada do tipo. Pelo menos não com você.
  – Também não fique com o Dave. - Krist se aproximou da mulher, a puxando para um abraço de urso e beijando o topo da cabeleira vermelha. - Ele é um bobão, só que te ama muito. É somente o jeito tonto dele de te proteger. - Tentou argumentar, mesmo não estando nas melhores com o baterista.
  – Eu sei, só que… sei lá! Ele é meu melhor amigo, sabe? E isso me deixa puta com ele! - Madison desabafou, descansando a cabeça no corpo do rapaz. - Mas também, não vou ser hipócrita. Ele tá mentindo pra mim, eu tô pro Don. Só quero que toda essa teia se desfaça. Foram mentiras que nos trouxeram até aqui, até esse momento.
  – Meu Deus! Como estava com saudades dessa sabedoria! - O moreno brincou, arrancando leves risos das mulheres. - Venham, vamos ver o que tem na geladeira e tomar um café reforçado. Ainda é bem cedo e podemos fazer com calma. - Decretou, já encaminhando a todos para a cozinha.
  – Vai ligar pra sua casa e avisar que está em Seattle, Mad? - Kimberly perguntou, enquanto  enchia a chaleira com água.
  – Vou. - A outra assentiu, pegando canecas no armário. - Até porque, minha mãe já deve ter contado pra Tia Virgínia e ela com certeza vai falar pro Dave.
  – E daí ele irá surtar e quando perceber que seu voo já pousou e você não apareceu na própria casa e nem na dele, vai vir correndo pra cá. - Krist completou, revirando os olhos.
  – O que deve acontecer logo. - A guitarrista finalizou, sabendo que era bem verdade. - Alguma novidade nas buscas, nessas horas que estive em viagem? - Teve de indagar, o coração não aguentando mais dar voltas em assuntos não tão importantes no momento.
  – Nenhuma. - Kim negou, tirando o bule que apitava do fogão e enchendo as canecas com água fervente. Preferia café, porém, Krist era um apreciador de chás e parecia que a ex cunhada também, já que não protestou. - Vamos nos separar novamente, hoje. Teremos mais ajuda pelo que fiquei sabendo.
  – Chris, Jerry, Eddie e Stone irão se juntar às buscas. Eles conhecem mais gente que nós, você sabe. - Novoselic não precisou completar a frase, para que se fizesse entender. - Se ainda assim não tivermos algum paradeiro do Kurt, avisaremos as autoridades. - Deu de ombros, mesmo que o gesto fosse contra o sentimento geral. Era como se quisesse expressar a impotência que reinava.
  – Porra, Don. - A ruiva passou as mãos pelos cabelos, suspirando derrotada. Onde estaria o rapaz? Imagens da casa dele preenchendo a mente, como avisos. - Temos que achá-lo, de um jeito ou de outro. - Concretizou, fitando o tampo da mesa e se concentrando em não ceder a vontade de chorar.
  – E iremos, Madison. - Kimberly afagou um dos braços da jovem, querendo passar conforto. Dava para sentir o sofrimento e agonia dela, o medo da perda. Entendia muito bem aquilo, Kurt era seu irmão e mesmo que o relacionamento familiar fosse uma merda, sempre foram próximos e se apoiavam. Ver Mad ali, se esforçando em ser forte, em se manter no controle e não desmoronar, não ceder a dor e ao medo, somente lhe deixava mais emocionada. Ela realmente amava Don, passando por cima das feridas e mágoas, preocupando-se com o bem-estar dele. E ainda tinha o bebê. Não sabia se no lugar dela conseguiria aguentar. Não mesmo.

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