23 - Você é o irmão mais velho que eu nunca tive

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Praça do Grajaú

Cerâmica, Nova Iguaçu

Sábado, 26 de outubro de 2013

Por volta das 21h da noite


Querido amigo,

O telefone do Laion tocou e, depois de ele ficar meia hora dizendo "tá, mãe" ou "já vou", o menino anunciou: "Gente, vou ter que partir". E Davi disse: "Já vai tarde". E a gente começou a rir. Eu fui o último a rir, sabe, porque eu demorava um pouco pra entender quando alguém estava brincando. Mas, enfim, depois que Laion meteu o pé na estrada, aconteceu uma coisa inesquecível.

Voltou a cair o maior toró e a mãe de Davi pediu pra ele tirar as roupas do varal, porque a chuva estava chegando até lá. E, falando em mãe, você já deve desconfiar que nessa hora minha mãe já devia estar me ligando desesperada, achando que alguém tinha vendido meus órgãos. Eu já até podia imaginar que quando eu virasse a esquina da minha rua sem saída, as luzes das cirenes iam rabiscar o meu rosto. E eu estreitaria os olhos e veria ali o carro da polícia, dos bombeiros ou, pior, da sociedade protetora dos animais. E eu veria minha mãe gesticulando freneticamente enquanto se descabelava: "Meu filho sumiu. E agora? Quem eu vou humilhar? Pelamordedeus, encontrem o meu bebê". E eles: "Como ele é?". "Um menino estranho". "Perfeito, essa é toda informação que precisamos. Ligaremos se acharmos algo". Eu até sorri quando esses pensamentos passaram pela minha cabeça, mas tentei me concentrar em outra coisa. Eu só queria viver aquele momento como se a linha do tempo se resumisse ao hoje. E, além do mais, eu ia voltar para casa mais ou menos na hora que ela chegaria do trabalho. Eu só não esperava que a chuva fosse atrapalhar meus planos. Foi aí que Davi, depois de apanhar as roupas do varal, notou que eu estava olhando para a chuva.

— Fica tranquilo, cara. — ele pôs a mão no meu ombro. — Sua mãe deve saber que você vai se atrasar por causa da chuva. Se você for agora, você pode pegar uma pneumonia, uma bronquite, uma aids, é melhor não.

Eu sufoquei um riso.

— Aids não se pega assim, só acho.

— Tô zoando, cara. — Davi sorriu também. — Aliás, se a chuva não parar, você pode até dormir aqui, se quiser. Relaxa. Tudo que nóis perder, a gente acha. 

— Obrigado, Davi.

Então, depois disso, ele foi dobrar as roupas no quarto e eu notei que uma delas era um jaleco cinza e achei estranho. Parecia um uniforme de colégio que eu conhecia. Eu pensei em perguntar para ele onde ele estudava, mas lembrei que ele poderia fazer o mesmo comigo e então fiquei quietinho.

Eu pensei em bagunçar a roupa só para ver o logotipo da escola, mas eu ia parecer um maluco e ele nunca mais ia me chamar nem pra beber um copo de água. Então, depois desse trabalho, a gente voltou para a varanda e ficou pensando junto na morte da bezerra e no churrasco que a gente podia fazer com ela amanhã. Bem, isso até a mãe dele aparecer na varanda e soltar um grito de terror ao olhar para o chão:

— Como vocês conseguiram sujar tanto?

— Ué — disse Davi. — A gente se supera a cada dia, né?

— O quê? — a mãe dele esbravejou. — Você vai limpar tudo com a língua, ouviu?

Então, cinco minutos depois, a gente fez a faxina. Limpou a mesa, varreu a varanda e ficou esperando a chuva passar. Até que Davi enxugou o suor da testa e me perguntou:

— Cara, você se divertiu hoje?

— Acho que é a milésima vez que você me pergunta isso.

— É que eu quero ter certeza.

— Ok. — disse eu. — Então, eu te dou 100% de certeza absoluta. Tudo bem ou quer mais?

— Nossa, eu tô embriagado já com tanta certeza. — disse Davi. — Tudo bem, cara, vou parar de perguntar isso. Mas tá a fim de brincar de uma coisa? 

— De quê?

Davi viu as gotinhas que caíam do telhado da varanda e se aproximou. Ele deu um soco na gotinha até ela explodir em milhares de gotículas e borrifar em mim. 

— Ah, é assim? Vai ter troco!

Aí, eu arregacei as mangas do casaco e mandei-lhe logo um ataque triplo socando as goteiras. O rosto dele ficou cheio de gotículas.

— Isso não vai ficar assim.

Davi: Hadouken

Eu: Kamehameha.

Ele: Sinta a força do meu Rasengan.

E na terra da imaginação a gente estava brincando de lutinha. Ali, nós tínhamos poderes, mas nunca íriamos nos machucar, a gente só queria fazer um ao outro feliz. Na vida real, eram só dois moleques socando a queda da goteira. Fazia tempo que eu não visitava a terra da imaginação onde tudo é possível, até mesmo lançar luz ao bicho-papão e ver que ele não é tão assustador assim. Então, Davi disse: "Cara, isso aqui é melhor que videogame." E eu: "É mesmo." E foi então que ele disse palavras inesquecíveis:

— Sabe, Max, eu queria que a chuva não passasse e a gente ia ficar brincando aqui a noite toda. Se quisesse, você ia até dormir aqui. E você seria o irmão mais velho que eu nunca tive.

Meu rosto ficou quente quando ele disse isso, porque era uma criança tão pura, tão sem maldade, tão distante de toda escuridão que há em mim. Eu também fiquei com os olhos marejados, mas não deu para perceber porque minha cara já estava molhada pela chuva.

Minha casa não é um porto seguro, querido amigo. Se você tiver uma família, saiba que, infelizmente, cada um de nós é uma ilha. Mas, em uma família, todas elas devem ser unidas por pontes indestrutíveis de afeto, onde cada um tem passaporte livre para passar o tempo que for necessário cultivando no coração do outro frutas, legumes e amores. Meu sonho não é ter um amigo. Se fosse, já teria sido realizado em você. Eu sou mais ambicioso. O meu sonho é ter uma família.

Eu queria que nós morássemos numa mesma casa para sempre e, se não houvesse casa, ainda assim, eu faria o teto da nossa amizade ser as estrelas.

— Eu também queria, Davi. — eu sorri. — E você seria o irmão mais novo que eu nunca tive.

Com carinho,

Max 

Eu não sei o nome do meu melhor amigoWhere stories live. Discover now