Memórias

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|ALERTA GATILHO: SE VOCÊ JÁ SOFREU QUALQUER TIPO DE ABUSO E É SENSÍVEL A ESSE TIPO DE CONTEÚDO, NÃO LEIA.|

[• Corumbá (MS), 2023 •]
- Corumbá!!! Encarou sua cidade natal, com lágrimas nos olhos. Como esse lugar mudou desde que eu saí daqui. Encarou ao redor, enquanto não era capaz de reconhecer quase mais nada. Nunca pensei que voltaria. Mas, parece que o meu destino é estar aqui. Nesse lugar de onde eu nunca deveria ter saído.
A moça abriu a bolsa e encarou dois cartões de débito. Um, do uso pessoal de uma conta que Antônio nem sequer sabia que existia. E o outro, uma posse conjunta de todos os La Selvas. Uma conta feita por Antônio para os gastos gerais da mansão e manutenção dos carros. Irene sabia que não poderia usar mais nada desse fundo, pois além de não ser mais uma La Selva, também revelaria a Antônio onde estava, e encontrá-lo, era tudo o que ela não queria. Depois de tudo o que havia passado em Nova Primavera, quando viu sua vida começar a desmoronar, ainda naquela audiência que havia deixado clara a sobrevivência de seu antigo amante e todas as palavras proferidas por Caio, Petra e Antônio, em sua antiga casa, ela decidiu que precisava de paz. Achou que seria finalmente feliz ao lado do homem que amava, depois da morte definitiva de Ágatha. Mas, seus erros do passado insistiam em bater a porta. Onde quer que ela estivesse.
Agora, sabia que deveria cuidar do filho mais novo e pensar no que faria de sua vida, aceitando que seu lar definitivo agora seria novamente aqui, em Corumbá.
- Com licença, você pode me dizer se existe alguma casa a venda por aqui? Encarou o dono da mercearia que frequentava quando ainda era criança, sempre buscando o leite que sua mãe precisava em suas receitas. Ele era quem sabia de tudo por aqui. E por sorte, aparentemente não a havia reconhecido.
- Olha, eu sei de uma casa sim. Mas, não sei se ela vai de encontro ao que a madame procura não. Deu de ombros. Ela é bem simples. Aliás, são só casas simples que a madame vai encontrar por aqui.
- Não tem problema. Tentou sorrir, para parecer simpática. Eu não procuro uma grande mansão. Aliás, posso perfeitamente fazer as adaptações necessárias. Pode me dizer onde está essa casa?
- Aqui nessa rua mesmo. Apontou. Uma casa verde, com portão de grade na frente. Era a casa de dona Agnes e seu Leonardo. Moravam com os dois filhos pequenos. A moça foi embora logo depois que a mãe faleceu. Dizem que foi estudar fora, e se casou por lá mesmo. O mais novo, foi embora uns anos mais tarde, tentou a sorte no exterior e também não voltou. E Leonardo, bebia muito e morreu pelas ruas da cidade voltando um dia do bar. A casa tá parada desde então. Uma vizinha ficou responsável por vender o imóvel, mas nunca encontrou ninguém interessado.

[• Corumbá (MS), 1991 •]
- Eu já disse que eu não quero dormir com homem nenhum. O que você acha que eu sou pra me vender assim? Em troca dessas pingas baratas que você vive devendo no bar da esquina?
- Eu não estou te pedindo Irene. Estou mandando. Puxou novamente os braços da filha. Acha que vai continuar vivendo nessa casa sem fazer nada? Comendo e bebendo de graça? Tem que trabalhar. Tem que fazer o que eu quero. Vai fazer sim, tudo o que eu mandar.
- Acontece que eu não sou garota de programa. Voltou a resistir. Eu já te disse, vou terminar a escola e arranjo um trabalho pra ajudar em casa. É só você ter paciência. Quase gritou.
- Você vai dormir com o Zé Pedro pra pagar a minha dívida no bar. Reafirmou. Não vai fazer nada do que já não tenha feito antes. Todo mundo sabe que você não é nenhuma santa.
- Mas é claro que eu não sou. Você ABUSOU de mim a vida inteira.
- Cala essa boca e vai fazer logo o que eu mandei.
- Se a minha mãe estivesse aqui, nada disso estaria acontecendo. Reclamou, enquanto finalmente acatava a ordem do pai.
- Se a Agnes estivesse aqui, você ainda seria a mesma menina mimada que ela criou. Sentada pelo chão da casa, acreditando em contos de fada. Como se fosse uma princesinha.
- Sendo a criança inocente que você impediu que eu continuasse sendo. O encarou. Você acabou com a minha inocência e eu nunca vou te perdoar por isso. Nunca. Só continuo nessa casa, me submetendo a todo tipo de humilhação, porque o Dirceu precisa de mim.
- Tá... tá bom... Chega de Xororó. Vai logo lá pra casa do Zé Pedro que ele tá esperando. Vai e leva a camisinha. Não tem como alimentar outra boca aqui dentro de casa não. Chutou a porta, visivelmente embriagado.
- Eu tenho nojo de você. Gritou. Nojo.
- Me respeita sua vagabundazinha. Eu sou teu pai.
- Um homem que vende a própria filha, não merece respeito, Leonardo. O chamou pelo nome, renegando-o como pai.

[• Corumbá (MS), 2023 •]
- E então madame? Vai querer conhecer a casa ou não? Tá aí toda pensativa. Não diz que sim e nem que não. Eu não tenho o dia todo não senhora.
- Desculpa. Enxugou disfarçadamente as lágrimas que se formavam em seus olhos. O senhor disse que não tem nenhuma outra, não é? Encarou o homem, tentando encontrar uma outra opção que não fosse a casa onde tanto sofreu com as maldades de seu pai.
- Não. Não tem. Afirmou. É só essa mesmo. É pegar ou largar. Negociou.
- Tudo bem. Eu pego. Afirmou, enquanto tentava encontrar algum propósito em tudo isso.
A casa parecia a mesma. Enquanto fechava a compra do imóvel, Irene pensava em milhões de possibilidades que a fizessem se tornar uma casa completamente diferente daquela que abrigava as memórias de todos os abusos que sofreu do pai. Ainda guardava no coração, tudo o que sua mãe ensinara. E por isso, ainda podia sentir que era uma boa pessoa, apesar de todos os crimes que precisou cometer para garantir que nunca mais seria usada de novo.
Seu pai já havia morrido. Zé Pedro, o homem para quem ela havia sido vendida por uma noite, também. A cidade era pequena, e ao que parece, as pessoas nem tinham dinheiro para consumir soja por aqui. Milho, apenas da própria espiga. Então, o nome do poderoso Antônio La Selva não era conhecido em grande escala. E ter sido casada com ele, não seria um empecilho.
Irene comprou algumas tintas, fez uma boa limpeza na casa, antes de pintar as paredes. Abriu todas as janelas e deixou a brisa entrar. Foi ao restaurante do lado e se alimentou, mesmo não sentindo tanta fome. Deixou que o cheiro da tinta fosse embora com o vento e se fechou em sua nova casa. Buscando forças para entender que todo o sacrifício que estava fazendo, seria por ele. Pelo filho que esperava.
- Eu vou ser uma mãe como a vovó Agnes. Prometeu. Talvez menos inocente e um pouco mais descrente de toda essa bondade que ela via no mundo e nas pessoas. Mas, a melhor mãe que você pode ter. Isso eu te garanto. Chorou, enquanto encarava tudo ao redor.

Antorene: The After Where stories live. Discover now