James (XXVII)

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  A primeira coisa que faço quando chego ao meu quarto é atirar-me de costas para a cama, da mesma forma como fiz quando retornei do planetário. A única diferença são os pensamentos que me invadem a cabeça. Percebo que o facto de não contar nada sobre mim às pessoas pode afastá-las, pois demonstra falta de confiança. No entanto, ter passado de não contar nada a compartilhar as coisas mais importantes sobre a minha vida, assusta-me. Eu confio na Emily, daí ter-lhe contado tudo o que contei, mas a verdade é que a conheço há muito pouco tempo. Nada me garante que ela nunca se vai afastar. Não posso deixar que a emoção tome decisões por mim. Não posso, mas já o fiz.

                                                                          7ª Semana da mudança

  Sento-me na banqueta e pouso os dedos sobre o teclado do piano de cauda. Temos pouco menos de um mês para treinar para o segundo e último ato da peça, e começar logo com o solo de piano não ajuda os meus nervos. Olho para a primeira fila onde está a professora, a Emily e uns quantos outros alunos sentados, como que a pedir permissão para começar. A Emily pega no megafone, que comprou na segunda semana, e diz:
- Podes começar quando quiseres, James. Boa sorte!
  Esfrego as mãos, dou um saltinho na banqueta para me sentir mais confortável e quando vou começar a tocar a professora diz, através do megafone da Emily:
- Já reparaste que és o único a quem ela deseja boa sorte? Acho que não preciso dizer mais nada. – Ri-se.
- É nada! – diz ela, fazendo-se ofendida.
- Tens a certeza?
- Pronto, tem razão. Mas é só porque o James tem o papel mais importante e, consequentemente, mais difícil. – defende-se, olhando para mim e piscando-me o olho.
- Claro que sim, Emily Castle. Fazemos assim, eu finjo que acredito e tu finges que acreditas que eu acreditei. – diz a professora. Todos se riem. – Agora sim, podes começar. Boa sorte! – completa, imitando a voz da Emily.
- Obrigado. – digo, rindo-me. Este momento foi suficiente para me tranquilizar e poder mostrar o quê que tive a treinar neste último mês.

  Quando termino o solo, todos aplaudem. Mal sabem eles que nem foi tão difícil aprender a tocar esta música. A peça continua até à cena final, onde tenho de beijar a rapariga que contracena comigo. Segundo a história, os personagens principais vão desenvolvendo a relação e o amor ao longo da peça e apenas no último momento é que ambos se beijam, pondo fim à obra. Gostei imenso quando li a peça pela primeira vez, só não percebi o porquê de o autor querer que os personagens se beijem pela primeira vez no fim. Que autor desenvolve a relação entre dois personagens de modo a fazer com que eles só realizem o que todos querem ver no final?
  Mentalizo-me que estou puramente a representar um personagem e envolvo os braços na cintura da rapariga, que por sua vez me envolve o pescoço com os seus braços. Quando estou prestes a beijá-la ouço:
- CORTA! – grita a Emily. – Está ótimo, intervalo de dez minutos e voltamos com o James no piano no começo do ato.
- Emily, eles ainda não tinham acabado o ato. – observa a professora.
- Tinham, só faltava o beijo e isso eles não precisam treinar sempre que fizermos o ato. – diz a Emily.
- Entendo-te. Não queres ver o teu 'amigo' beijar outra pessoa, não é? – pergunta, fazendo o símbolo de aspas com os dedos.
- Ou a professora conhece-me muito bem ou eu sou muito previsível. – diz, achando que não estou a ouvir a conversa toda, por estar de costas para ela.
- Um pouco das duas. – responde a professora, rindo-se.

  Faltam dois dias para o grande dia. O dia da apresentação de dois meses de trabalho. Estas últimas três semanas foram bastante agitadas. Para além dos testes, temos treinado o segundo ato como se não houvesse amanhã. Três dias por semana, quatro vezes por dia. Todas essas vezes ouvi a Emily gritar 'Corta' sempre que tivesse prestes a beijar a rapariga. Para mim é ótimo, porque não me sinto confortável, mesmo sendo técnico. Para a rapariga deve ter sido um pesadelo, porque na semana passada pediu-me em namoro. No entanto, deve ter sido esta rotina intensiva que lhe fez confundir os sentimentos por mim, até porque nem sei o nome dela.
  Para agravar a situação do meu sistema nervoso, sinto-me ansioso, pois estou prestes a contar aos meus pais que entrei no teatro da escola e que estão convidados a assistir na sexta-feira. Não lhes contei mais cedo, porque nunca surgia a oportunidade adequada para tal e não é que hoje seja o melhor dia, mas é o último. Se não lhes contar hoje, eles descobrem sozinhos e é pior. Sento-me na ilha da cozinha, à espera que os meus pais cheguem para jantar, e aproveito para meter a conversa em dia com a Betty.
- O teatro é já na sexta. – digo.
- Já? – pergunta, voltando-se para mim.
- Sim.
- E já falaste com os teus pais?
- Vou fazê-lo hoje. Por isso que te disse que ia jantar com eles. Não é pelo convívio.
- Não digas isso, James. A tua mãe gosta muito de ti. – diz-me.
- Vê? Até você sabe que o meu pai não gosta de mim.
- Não foi isso que quis dizer. – desculpa-se.
- O quê que sabe que eu não sei? – pergunto.
- Nada, James. Não sei nada que tu não saibas. – gagueja. Quando lhe vou responder, os meus pais chegam e ela vira-se para a bancada onde estava a fazer a comida.
- Olá. – cumprimento, sem muito entusiasmo.
- Olá, James. – responde o meu pai, sem olhar para mim.
- Olá, meu querido. Como estás? – cumprimenta a minha mãe, dando-me um beijo.
- Estou bem, obrigado.
- O quê que se passa para estares aqui? – pergunta ela. Quando estou prestes a responder, a Betty interrompe-me:
- O James estava a dizer-me, antes de vocês chegarem, que os testes tinham acabado.
- Ah, pois é. A Betty já nos disse que não jantas connosco por teres que estudar. – diz, quando percebe que não estou a perceber o que estão a falar. Quero dizer que o motivo para não jantar com eles é o meu pai, mas se quero ter alguma chance de aceitarem a minha ida ao teatro, tenho de me conter e aceitar a mentira da Betty.
- Ainda preciso esperar muito para comer? – pergunta o meu pai, já sentado, quebrando o bom clima que se estava a instaurar.
- Não, Sr. Wilson. Está quase pronto. – responde a Betty. Conto mentalmente até vinte para não lhe dizer que, se tiver com pressa, que pode descer e ir a um restaurante.
- Estou aqui porque queria dizer-vos que, desde outubro, ando no teatro da escola e a grande apresentação vai ser na sexta. – informo. Não consegui aguentar mais tempo.
- Que notas vais ter este trimestre? – pergunta o meu pai, impassível, sem perder a sua postura característica.
- Tenho dúvidas a ginástica, mas no resto tenho nota máxima. – respondo. – Porquê?
- E é suposto irmos ver a tua apresentação? – questiona, ignorando a minha pergunta e pegando no telemóvel.
- Queria que fossem, sim. – respondo, olhando para a minha mãe que permanece muda.
- A que horas começa?
- Oito da noite e dura pouco mais de uma hora, por causa da pausa entre atos. – respondo.
- Lá estaremos. – diz, pousando o telemóvel. – Onde se compra os bilhetes?
- É de graça para estudantes e pais. – respondo.
- Claro que é. – diz, num tom trocista. Ignoro as suas provocações e dou um abraço à minha mãe. Já tinha saudades de o fazer.
  Minutos depois estamos sentados à mesa a ser servidos pela Betty. 'Claro que é' são palavras que ainda me ecoam na cabeça. Não consigo ignorar, pelo que pergunto:
- O quê que queria dizer com aquilo?
- Estás a falar de quê? – pergunta o meu pai.
- Quando disse que a entrada era gratuita, respondeu 'Claro que é', num tom depreciativo. O quê que queria dizer com isso?
- Queria dizer que esperava mais da tua escola. Uma escola do nível da tua não devia ter grandes eventos gratuitos, para qualquer um entrar.
- E porque não? Porquê que uma pessoa que recebe menos que você é inferior a si? – pergunto. Se não conhecesse a minha mãe, perguntava se sou realmente filho desta pessoa a quem chamo pai.
- Quando cresceres vais entender que pessoas com a nossa classe social, não foram feitas para conviver com a ralé, como essa tua amiga.
- Está a admitir ser inferior à mãe. – digo, olhando para ela, que me faz um olhar reprovador. - Está a julgar as pessoas pelo que elas recebem. Segundo a média salarial você recebe metade do que a mãe recebe mensalmente, mesmo tendo mais dois anos de carreira que ela.
- Estás a esticar-te, James. – É tudo o que ele diz. Perdeu os argumentos.
- Foi o que você disse.
- Não me faças falar. – responde.
- Adorava que falasse, na verdade. Chegam sempre tarde a casa e às vezes até saem mais cedo que eu, de manhã. Que advogado e juíza é que trabalham das seis da manhã às oito da noite? – questiono.
- Deves ter-te esquecido de uma coisa, James. - diz, olhando para mim pela primeira vez hoje. – Aqui, eu sou o pai e tu és o filho. Se eu quiser, eu chego às oito, meia-noite, duas da manhã ou durmo num hotel. O que eu faço ou deixo de fazer não te diz respeito. Foca-te no teu trabalho e eu foco-me no meu.
- Mãe, o quê que me estás a esconder? – pergunto, olhando para ela.
- James, ouve o teu pai. Por favor.
- Tu não eras assim antes do Tyler... - digo, parando a meio da frase. Arrependo-me de ter disto isto assim que as palavras me saem da boca.
- Chega, James. Foste longe demais. – grita o meu pai, levantando-se da cadeira.
- Está tudo bem Ward. O James não disse por mal. – diz ela, pousando a sua mão sobre a do meu pai.
- Desaparece daqui. – diz-me ele. Levanto-me da cadeira e envolvo o pescoço dele com as minhas mãos. Faço o máximo de força que consigo, fazendo com que me olhe nos olhos enquanto o esgano. Acordo dos meus pensamentos.
- Não ouviste? Vai para o teu quarto. Embora, desaparece. – Está ele a dizer. Levanto-me e quando vou a sair da sala decido voltar para trás e digo:
- E já agora, pai. A minha 'amiga' não é de classe baixa como disse, e mesmo que fosse, continuaria a ser mais importante para mim do que alguma vez você será, porque ela sim, ama-me incondicionalmente.
  Antes que ele pense numa resposta, viro costas e vou para o meu quarto até que ouço a minha mãe seguir-me.
- Um dia eu conto-te tudo, prometo. – sussurra-me ela.
- Tudo o quê, mãe? – pergunto.
- Quando for a altura certa. – completa, voltando para a sala.

  'O quê que ela me vai contar e quando?' é oque estou a pensar quando fecho a porta do meu quarto. Tantos anos se passaram desde a morte do Tyler e nunca falamos disso. Não falamos da nossa mudança para Moonsland, nem da mudança da outra moradia para este apartamento. Mas o quê que isso tem a ver com eles nunca estarem em casa? Será que tem a ver comigo e é por isso que não me dizem o motivo? Se fosse algo banal eles contavam, não contavam? Mas não posso pensar nisto agora. Preciso focar-me. A peça é daqui amenos de quarenta e oito horas. Sento-me na banqueta e pouso os dedos nas teclas do piano. Respiro fundo, limpo a mente e começo a tocar.

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