Cidade do pecado

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Quando eu tinha quatro anos, minha mãe me deu um cavalo de presente, morávamos na fazenda da família, em Woodstock no estado da Virgínia, chamei o cavalo de Buddy, e aquela foi a melhor época da minha vida. Morar na fazenda era muito importante pra mim, na época, eu adorava aquilo, a liberdade, tranquilidade, tudo, amava até o vento que balançava os galhos que batiam na janela da minha casa na árvore, eu literalmente amava tudo,  sentia que lá era o meu lugar, com a minha avó, meus pais e amigos de infância, era uma vida simples, mas maravilhosa. Todos os dias de manhã cedo, minha avó fazia os melhores biscoitos amanteigados, tomávamos café da manhã todos juntos e depois mamãe e eu íamos pegar ovos no galinheiro para fazer bolos enquanto vovó começava a preparar o almoço e papai ia a cavalo resolver as coisas que surgiam com os funcionários da fazenda. No final da tarde, quando eu finalmente tinha tempo para cavalgar, eu via papai e mamãe deitados na grama observando o sol se por ao longe. Alguns casamentos se desgastavam com o passar do tempo, mas o deles não, o deles era do tipo que se fortalecia. Foram os melhores anos da minha vida, com certeza, mas isso mudou no ano em que minha mãe foi diagnosticada com câncer. Foi como se a cor de todo o meu mundo tivesse sido alterada para cinza. Os dias começaram a passar devagar. E minha mãe, que era a alegria de tudo naquela fazenda, foi ficando debilitada, como se a sua luz interior estivesse sendo apagada.

- Minha flor do dia – ela disse – não desanime – mamãe sussurrou para mim, passei a tarde sentada ao lado da janela – eu ainda tenho fé – ela se encorajava, apesar de já saber que estava em estágio terminal. Eu segurei as lágrimas em todas as conversas que tivemos depois do diagnostico, olhar para minha mãe e pensar que poderia ser a nossa última conversa, ou o último abraço era demais para mim. Meu pai ficou deprimido e afastava todo mundo de si mesmo, até mesmo eu, sua própria filha, que só tinha treze anos na época e assim como ele sofria muito com tudo aquilo. Geralmente essa situação aproxima a família, mas com a nossa foi diferente, meu pai ficou frio, calado, como se mais nada pudesse alegrar a vida dele. Quatro meses depois, acordei bem cedo e vi vovó chorando na porta do antigo quarto de mamãe, que seria meu quando eu fizesse dezesseis, minutos depois papai bateu a porta com força e correu pela trilha até o lago. Apenas fechei os olhos. De alguma forma o dia estava diferente, nublado, sem cor. E eu sabia o que havia acontecido. Tentei apenas pensar  nela viva, fazendo as coisas que gostava, alegrando o dia de todos, e na fé e esperança que ela mantinha, mesmo sabendo que suas chances eram bem poucas, isso com certeza era uma das muitas coisas que eu admirava em minha mãe. Meu pai não esperou um dia sequer. Assim que minha mãe foi enterrada, ele colocou todas as nossas coisas em duas malas gigantes e assim nos mudamos para Nova Iorque, para que ele pudesse finalmente aceitar cuidar da empresa multinacional de gêneros alimentícios que foi passada para a minha avó ao longo de várias gerações, essa pauta sempre foi levantada, mas minha mãe se recusava sair de Woodstock para morar em uma metrópole enquanto eles tinham funcionários de confiança desde a época que meu avô era vivo para fazerem isso. Então, sem ter escolha nenhuma, deixamos a fazenda, minha avó, meus amigos e Buddy para trás. Um vazio enorme me preenchia. Eu não tinha disposição para fazer nada. A não ser chorar e chorar. A saudade que sentia de minha mãe era horrível. A pior coisa que eu já senti na vida. Era como se o tempo tivesse parado. E apesar de estar em uma das cidades mais agitadas do mundo, meu coração era um tremendo oceano congelado. Era sufocante.  A sensação de que um buraco imenso havia sido cavado em meu peito. E toda a minha felicidade escorria por esse buraco cada vez mais, deixando apenas dor, sombras e feridas abertas que não cicatrizavam nunca, nem com o passar do tempo e a distância das lembranças mais vivas que tinha de minha mãe, meu pai voltou a ser quem era, a cada vez mais ele se afastava, me deixando sozinha, sem minha mãe do meu lado e agora sem ele também. Eu sempre me perguntava o que faria se esse buraco jamais melhorasse... Se as feridas nunca se curassem... E se essa dor fosse permanente e irreversível? E foi ai que Margot entrou na minha vida. Assim que me vi pronta para entrar na escola, fiquei meio deslocada, mas logo Margot chegou e começou a animar os dias longos. E foi assim que eu comecei a ir a festas. Ficar com garotos. E a me distrair mais. Com coisas fúteis eu sei, mas que eram a única forma de esquecer isso tudo.  Meu pai se afogava em bebidas em casa, e quando eu saia a noite ele já estava bêbado demais para lembrar o próprio nome.  Balada, bebidas, garotos, farra, ressaca. Tudo isso começou a fazer parte da minha rotina. E é quem eu sou agora. Eu me sentia bem fazendo tudo isso. Era a única forma de escapar da lástima que minha vida se tornou. Com o tempo, meu pai foi melhorando, começou a pegar mais no meu pé, e voltou sua atenção total para a empresa que ele e minha mãe herdaram do meu avô materno. Por esses anos todos meu pai não teve coragem de visitar o lugar em que vivíamos. Nem mesmo ligar para perguntar como vovó estava depois de quatro anos sem a sua filha caçula e sua neta, eu ligava as vezes para saber como estavam as coisas, mas quando percebi que isso apenas me fazia lembrar da vida perfeita que eu achava que tinha, passei a ligar apenas em feriados e datas importântes. Eu continuei com minha nova forma de viver, chegando em casa poucos minutos antes da hora do colégio, bêbada demais para lembrar de qualquer coisa. As coisas finalmente iam voltando ao normal. Fiz uns exames e o médico quase me implorou para passar algum tempo sem contato com a bebida alcoólica, e meu pai suou para tentar explicar que não tinha nenhum controle sobre mim, o que ele deixou transparecer que o afetava, e depois de ver esse pequeno lampejo de interesse e preocupação de meu pai comigo, eu o fiz, dediquei meu tempo somente aos estudos e a uma ONG que luta para proteger os animais, até o dia que conheci Katie, a nova namorada do papai. Secretária dele na empresa que fazia trabalhos extras na cama. Era óbvio que meu pai nunca nessa vida ia amar outra pessoa. Ele ficou desolado com a perda de mamãe. Não ia ser uma secretariazinha nova-iorquina que ia mudar os sentimentos dele, com o tempo eu entendi que tudo o que a nossa relação tinha se tornado, o afastamento, o desinteresse em mim, se tornaram gatilhos para que eu nunca pudesse aceitar vê-lo com outra pessoa.

Antes que o Verão Acabe (HIATO)Where stories live. Discover now