Meu suicídio

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O SUICÍDIO É UMA FORMA DE ASSASSINATO – assassinato premeditado.

Não é algo que se faz da primeira vez que se pensa em fazer. A gente precisa se

acostumar com a ideia. E precisa dos meios, da oportunidade, do motivo. Um

suicídio bem-sucedido exige boa organização e cabeça fria, coisas geralmente

incompatíveis com o estado de espírito de quem quer se suicidar.

É importante cultivar um distanciamento. Uma forma de fazer isso é

imaginar-se morta ou morrendo. Havendo uma janela, deve-se imaginar o

próprio corpo caindo da janela. Havendo uma faca, deve-se imaginar essa faca

penetrando na própria pele. Havendo um trem que já vai chegar, deve-se

imaginar o próprio corpo esmagado sob as rodas. Esses exercícios são essenciais

para atingir o distanciamento necessário.

O motivo é de suma importância. Sem um motivo forte, vai tudo por água

abaixo.

Meus motivos eram fracos: um trabalho de História Americana que eu não

queria fazer e a pergunta que eu me propusera meses antes: "Por que não me

matar?". Morta, eu não precisaria fazer o trabalho. Nem precisaria ficar

ponderando aquela pergunta.

Essa ponderação me desgastava. Depois que a gente se faz uma pergunta

dessas, ela não nos larga mais. Acho que muita gente se mata só para pôr fim ao

dilema de se matar ou não.

Tudo o que eu pensava ou fazia era imediatamente incorporado ao dilema. Fiz

um comentário idiota – por que não me mato? Perdi o ônibus – melhor acabar

com tudo. Até o que era bom entrava no jogo. Gostei desse filme – talvez eu não

devesse me matar.

Na verdade, eu só queria matar uma parte de mim: a parte que queria se

matar, que me arrastava para o dilema do suicídio e transformava cada janela,

cada utensílio de cozinha e cada estação de metrô no ensaio de uma tragédia.

Só fui descobrir tudo isso, porém, depois de engolir cinquenta aspirinas.

Eu tinha um namorado chamado Johnny, que escrevia poemas de amor para

mim. Bons poemas. Liguei para ele, disse que ia me matar, deixei o fone fora do

gancho, tomei minhas cinquenta aspirinas e percebi meu erro. Aí, saí para

comprar leite, coisa que minha mãe me pedira para fazer antes de eu tomar as

aspirinas.

Johnny chamou a polícia, que veio até minha casa e contou para a minha mãe

o que eu havia feito. Ela apareceu no supermercado da Avenida Massachusetts

no instante em que eu ia desmaiar em cima do balcão do açougue.

No trajeto de cinco quarteirões até o supermercado, a humilhação e o

arrependimento me invadiram. Eu havia cometido um erro e agora ia morrer

por causa dele. Talvez até merecesse morrer por isso. Comecei a prantear minha

morte. Por um instante, senti compaixão por mim e por toda a infelicidade que

eu continha. Tudo começou a turvar e a rodopiar. Quando cheguei ao mercado, o

mundo estava reduzido a um túnel estreito e latejante. Eu havia perdido a visão

periférica, meus ouvidos zumbiam, meu pulso latejava. As costeletas e as

bistecas ensanguentadas, espremidas nos invólucros de plástico, foram as últimas

coisas que consegui enxergar com nitidez.

A lavagem estomacal me fez recuperar os sentidos. Um tubo comprido foi

enfiado no meu nariz, até o fundo da minha garganta. Parecia que queriam me

sufocar. Depois, começaram a bombear. Era como tirar sangue em grande

quantidade – a sucção, a sensação de tecidos que ruíam e se tocavam de um jeito

diferente do normal, a náusea de sentir que arrancavam tudo o que havia lá

dentro. Foi um ótimo desestímulo. Decidi que da próxima vez, com certeza, eu

não ia tomar aspirina.

No entanto, quando terminaram, perguntei-me se haveria uma próxima vez.

Eu me sentia bem. Não estava morta, mas alguma coisa havia morrido. Talvez

eu tivesse alcançado meu estranho objetivo de suicídio parcial. Senti uma leveza

e uma animação que havia anos não sentia.

Essa despreocupação durou meses. Fiz alguns trabalhos no colégio. Parei de

sair com Johnny e passei a sair com meu professor de Inglês, que escrevia

poemas melhores, embora não fossem para mim. Fui com ele para Nova York;

ele me levou ao Museu Frickpara ver o quadro de Vermeer.

A única coisa esquisita foi que, de repente, me tornei vegetariana.

Por causa do meu desmaio em cima do balcão do açougue, passei a associar

carne com suicídio, mas sabia que havia mais coisas por trás disso.

A carne estava machucada, sangrando, espremida em uma embalagem

apertada. E, por mais que tivesse passado seis meses livre desse pensamento, eu

também estava.


Garota, interrompidaWhere stories live. Discover now