Velocidade × viscosidade

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A LOUCURA ASSUME duas variantes básicas: a lenta e a rápida.

Não estou falando do seu início ou da sua duração. Refiro-me à qualidade da

loucura, ao problema cotidiano da piração.

Os nomes são muitos: depressão, mania, ansiedade, agitação. Não dizem

grande coisa.

A qualidade predominante, na forma lenta, é a viscosidade.

A experiência se faz espessa. As percepções se adensam e embotam. O tempo

se arrasta, pingando lentamente pelo filtro entupido de uma percepção adensada.

A temperatura do corpo é baixa. O pulso é preguiçoso. O sistema imunológico

fica meio adormecido. O organismo torna-se turvo e salobro. Até mesmo os

reflexos se reduzem, como se a nossa perna não tivesse ânimo para sair do torpor

e reagir com um chute à marteladinha no joelho.

A viscosidade se dá nas células. O mesmo acontece com a velocidade.

Ao contrário do coma celular da viscosidade, a velocidade investe cada

plaqueta e fibra muscular com um pensamento próprio, um meio de conhecer e

comentar seu comportamento. Há uma percepção exacerbada e, para lá da

infinidade de percepções, uma infinidade de pensamentos sobre essas

percepções e o próprio fato de ter percepções. A digestão é capaz de matar! O

que quero dizer é que a percepção ininterrupta dos processos digestivos pode

matar pela exaustão. E a digestão é apenas uma digressão do pensamento, que é

onde começa o verdadeiro problema.

Tomemos um pensamento qualquer – qualquer coisa, tanto faz. Estou cansada

de ficar aqui sentada em frente à sala das enfermeiras: um pensamento

perfeitamente racional. Eis o que a velocidade faz com ele.

Primeiro, você analisa a frase: "Estou cansada". Pois bem, será cansaço

exatamente? Isso é o mesmo que sonolência? Você precisa conferir todas as

partes do corpo para ver se está com sono e, enquanto faz isso, é bombardeada

por imagens sobre a sonolência, mais ou menos assim: cabeça caindo sobre o

travesseiro, cabeça batendo no travesseiro, João Pestana e a Bela Adormecida

esfregando os olhos sonolentos, um monstro marinho. Ih, um monstro marinho.

Com sorte, você se esquiva do monstro marinho e se atém à sonolência. De volta

ao travesseiro, a lembrança de ter tido caxumba aos 5 anos, a sensação da

papada inchada sobre os travesseiros, a dor ao salivar. Pare. Vamos voltar à

sonolência.

No entanto, a ideia da salivação é atraente demais e você parte em excursão

pelo interior da sua boca. Já esteve ali antes e não achou bom. O problema é a

língua: é só pensar na língua que ela se torna um estorvo. Por que será que é tão

grande? Por que é áspera nas bordas? Será uma deficiência de vitamina? Seria

Garota, interrompidaWhere stories live. Discover now