Capítulo 9

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Demoraram três dias a chegar à cidade. Três dias a atravessar as paisagens, as montanhas, os riachos tumultuosos, três dias a enfrentar o frio, a massacrar o rabo sobre o dorso do cavalo e do burro, três dias de silêncio, ao longo dos quais cada um deles vivera curvado sobre si próprio, como um bernardo-eremita.*

*Crustáceo que vive em conchas em forma de caracol, que vai trocando à medida que aumenta de tamanho.

Quando finalmente chegaram a Punta Arenas, estavam tão exaustos que mal se seguravam sobre as suas montadas. Curvavam-se, quase caíam, faziam esgares de dor ao mais pequeno desvio, e os seus rabos estavam cheios de furúnculos dolorosos; não era uma cena absolutamente nada triunfal.

Sem um centaco no bolso, dirigiram-se ao banco para levantarem o dinheiro de Luís.

-Devias esperar por nós cá fora - sugeriu Luís a Angel.

-Porquê?

-Para tomares conta dos animais.

-Não sou nenhum guardião de pilecas - rosnou Angel.

Luís passou a mão pelos cabelos de Paolo:

-Ouve...Acho mesmo que é melhor eu entrar sozinho com o pequeno. Dá um ar mais respeitável.

Angel lançou um olhar desconfiado em direção ao edifício. Era cinzento, cúbico, sem encanto. Uma câmara fixada sobre a porta vigiava os clientes como uma sentinela. Pensava na sua faca, em tudo o que fizera com ela. Isso também seria visível? Conseguiria a câmara ver através dele, detectar a sua verdadeira natureza?

-Está bem - disse finalmente. - Mas o Paolo fica comigo.

-Não, vem comigo.

-Vai ficar cá fora!

-Vem comigo lá dentro!

-Fica comigo cá fora!

Paolo deu a mão a Luís.

-Nunca vi um banco por dentro  - disse.

Angel sentiu o coração a contrair-se e ficar pequeno como uma uva passa. Perguntava a si próprio o que é que Luís estava a fazer. Que ideia teria na cabeça ao dizer que era mais respeitável entrar no banco com uma criança? Iria declarar à menina do balcão que Paolo era seu filho? Iria pedir ao pequeno que o tratasse por "Papá"? Iria levar a sério o amor e a ternura, aquela estranha felicidade que acabara por dar um pouco de sentido à sua existência?

Luís ajoelhou-se na frente do pequeno e tentou dar-lhe um jeito ao cabelo, penteando-lhe a gedelha rebelde com os dedos. Endireitou-lhe o colarinho da camisa, sacudiu-lhe as mangas do casaco, e a poeira fez Paolo espirrar. Então Luís estendeu-lhe o seu lenço, um quadrado de tecido, branco como um milagre.

-Hum - murmurou enquanto se punha de pé. - Agora sim.

Angel acabou por os deixar entrar no banco, os dois de mão dada. Ficou sozinho, de cabeça descoberta debaixo da chuva fina que começava a cair, polvilhando os coloridos telhados de Puntas Arenas de pequenos cristais semelhantes a açúcar.

Uma vez no banco, Paolo tirou as luvas, que descobrira entre as coisas do alpinista, e deixou-se entorpecer pelo calor do aquecimento. As pessoas iam e vinham, ou esperavam pacientemente em filas, em frente aos balcões. Havia homens da cidade vestindo fatos cinzentos, homens do mar de impermeáveis amarelos, homens da planície com casacos em pele, e mulheres. Há muito, muito tempo que Paolo não via mulheres - na verdade, desde a morte da sua mãe - e ele olhava para elas com uma imensa curiosidade. Entre as empregadas do banco, algumas vestiam saias e calçavam sapatos de tacão. Paolo apercebeu-se de que também Luís olhava para as mulheres, que as examinava com muita atenção.

Ocuparam um lugar numa das filas, em frente ao guiché dos levantamentos. Depois de tanto tempo passado na casa perdida e depois daqueles dias na estrada, estar num banco provocava neles um efeito engraçado. Ali, não se ouvia nem vento nem chuva. Havia ruídos de vozes, de máquinas de escrever, campaínhas de telefones, e, por detrás dos vidros fumados, o mundo exterior parecia irreal. Paolo, que nunca pisara uma alcatifa, teria gostado muito de descalçar os sapatos para sentir a sua suavidade debaixo dos pés. Em comparação com o seu mundo de rocha, de terra e de vento, o banco parecia-lhe um universo maravilhosamente calmo, acolchoado, civilizado. Tinha a sensação de ter atravessado o tempo e o espaço, e de ter chegado a um planeta diferente do seu.

Contudo, não sentia medo. A presença de Luís, ao seu lado, tranquilizava-o: ele conhecia as coisas da cidade, podia confiar nele.

Quando chegaram ao guiché, Paolo teve de se pôr em bicos de pés para ver o que havia por detrás. Uma mulher de cabelos grisalhos dirigiu-lhe um sorriso amável, e depois perguntou a Luís o que desejava. Luís abriu a sua sacola e retirou uma pasta. Estendeu o bilhete de identidade à senhora. Ela voltou-se por um instante para o ecrã do computador, voltou a sorrir e pediu a Luís que preenchesse um formulário. Durante o tempo que demoraram estas operações, Paolo contemplava as plantas em vasos, relógio de quartzo pendurado na parede, os móveis com gavetas metálicas, das quais os empregados regularmente extraíam papéis que depois distribuíam ao desafio aos clientes sossegados que o calor dos lugares adormecia. Ali ninguém caçava serpentes, ninguém sacava de uma faca sem dizer água vai, nem depenava galinhas, e, num canto, até havia uma máquina de água com copinhos de plástico. Paolo observava as pessoas que se cruzavam dizendo "bom dia!", "adeus" e "como está?" umas às outras. Como tudo aquilo parecia simples e agradável!

Finalmente, a senhora estendeu a Luís um maço de notas novas por debaixo do guiché.

-O seu filho não quer um rebuçado? - perguntou.

-Queres, Paolo? - disse Luís.

Paolo acenou com a cabeça. Não sabia o que era um rebuçado, mas daquela senhora simpática aceitaria qualquer coisa. Ela estendeu-lhe uma taça. Ele observou os papéis coloridos e escolheu um amarelo.

A senhora voltou a sorrir-lhe:

-Os meus preferidos também são os amarelos!

E o seu belo olhar de avó brilhou com ternura, ao cruzar-se com o do rapaz.

Depois tiveram de deixar o banco. Contrariado, Paolo abotoou o casaco e enfiou a cabeça entre os ombros. À saída, apertava com força um rebuçado, decidido a guardá-lo para o resto da vida, como um talismã. O papel amarelo, como um pequeno raio de sol caído do céu, só podia trazer-lhe felicidade.

As Lágrimas do AssassinoWhere stories live. Discover now