Capítulo 12

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Paolo acordou, incomodado por um peso sobre as suas pernas. Endireitou-se: Angel estava atravessado na cama, vestido, e era o seu corpo que lhe pesava sobre as pernas. Paolo libertou-se e inclinou-se sobre o rosto do homem. Sentiu o seu bafo morno e tranquilizou-se. Por um instante, no torpor de despertar, julgara-o morto, aniquilado por uma força misteriosa. Atirou as cobertas para trás para sair da cama. Enquanto se vestia, contemplava o quarto que, na véspera, pousara sobre a cómoda. O porto, a traineira, as manchas amarelas dos impermeáveis, o mar. Quando franzia um pouco os olhos, tinha a impressão de ser absorvido pela tela e de sentir o cheiro do peixe. O seu coração inchava como uma esponja, e, nas profundezas do seu ser, qualquer coisa estremecia. Aquilo desconcertava-o e dava-lhe um infinito prazer.

Angel ressonava, deitado na cama. Paolo saiu do quarto. 

Não encontrando Luís no andar de baixo, e não se atrevendo a ir bater-lhe à porta, decidiu ir ver o burro e o cavalo: afinal de contas, os animais eram tão importantes como os dois homens.

Um dia cinzento levantara-se sobre o pátio lamacento. Paolo saltitou para evitar as poças e chegou até debaixo do guarda-vento onde o burro e o cavalo, com o pêlo brilhante da humidade, batiam com os cascos no chão, com fome.

Encontrou feno ao fundo do abrigo e sentou-se sobre uma velha sela para os ver a comer. Atrás de si, suspenso de pregos enferrujados, havia todo um conjunto de material esquecido pelos cavaleiros de passagem: tapetes de sela, cilhas*1, almofaças*2, cabrestos*3... Paolo pegou num pingalim*4 em couro e por um momento brincou a açoitar as hastes de palha à sua volta, fazendo-as voar. Quando a palha ficou desfeita, fez marcas no chão gelado com a ponta do pingalim. No início, sem pensar, desenhou linhas ao acaso. E depois, apercebendo-se de que o pingalim era manejável, desceu da sela e aplicou-se. As palavras ganhavam forma na lama, quase melhor do que nas folhas brancas de Luís: Paolo - Chile - raposa - faca - jarro.

*1-Correia larga que passa por baixo da barriga do animal para segurar a sela.

*2- Instrumento de ferro, com 4 ou 5 pequenas serras de dentes miúdos, para limpar os cavalos.

*3- Parte dos arreios que cingem a cabeça e o focinho dos cavalos.

*4- Chicote fino e comprido, usado pelos cocheiros.

Contemplou o resultado. Depois, reflectiu e, timidamente, desenhou um C, um U, um A, depois um D, um R e um O. CUADRO.

-Bom dia, Paolo! - disse uma voz no pátio.

O pequeno assustou-se, viu que era Délia que se aproximava e corou. Patinhou na lama onde acabara de escrever e envolvida no seu xaile, juntou-se a ele debaixo do guarda-vento. Acariciou o pescoço do burro, depois o do cavalo.

-São teus?

-Sim.

-Estou a ver que tratas deles muito bem.

-Sim.

Acocorou-se na sua frente:

-É verdade que vens para o mercado de gado?

-Sim.

-Qual dos dois é realmente o teu pai? O Luís ou o Angel?

Paolo franziu o sobrolho e baixou a cabeça. O que é que devia responder? É claro que nenhum dos dois era o seu verdadeiro pai, mas como podia ele desempatá-los? Angel ocupara-se dele, alimentara-o, oferecera-lhe a raposa. Luís ensinara-lhe as letras, a beleza dos poemas e dera-lhe o quadro. Os dois homens faziam-no sofrer e viver ao mesmo tempo, como os pais. Délia apercebeu-se do seu embaraço e mudou de assunto.

-Quantos carneiros gostarias de comprar?

-Não sei.

-Dez?

-Sim.

-É preciso muito dinheiro para dez carneiros!

-E também uma vaca!

-E o Luís tem assim tanto dinheiro?

-Muito. Vai ao banco e pede-o a uma senhora muito simpática. Ela dá-lhe notas. E a mim, deu-me...

Paolo calou-se. Afinal não lhe apetecia falar do seu rebuçado da felicidade. Tinha medo de quebrar o seu poder mágico, se revelasse a sua existência.

-Deu-te o quê?

-Nada. Um copo de água.

Délia começou a rir:

-És um rapazinho muito engraçado!

Enfiou a sua mão fresca nos cabelos hirsutos de Paolo, aproximou-se dele, abraçou-o e deu-lhe um beijo na bochecha. Depois levantou-se e caminhou rapidamente através do pátio em direcção à estalagem, porque estava frio. Ao vê-la desaparecer, Paolo sentiu-se invadido por uma forma de tristeza que nunca experimentara, nem sequer quando se lembrava da sua mãe morta, lá em baixo, debaixo do monte de terra. Era uma tristeza forte e profunda, mas também bela, e se encontraria, para quem tivesse paciência para procurar, uma verdade importante. Olhou para o pingalim, que conservara durante todo este tempo na mão. As palavras "jarro", "Chile", ou até "cuadro" não conseguiam exprimir o que ele sentia.

Quando acordou, Angel constatou que Paolo já não estava na cama, e foi ele quem se sentiu brutalmente abandonado. Abriu a torneira do lavatório, salpicou o rosto, olhou-se no espelho manchado de ferrugem pendurado por cima e perguntou-se a si próprio se mereceria viver. Ia fazer trinta e sete anos, a idade com que o seu próprio pai morrera, com tuberculose. Angel levou a mão ao peito. Não sentia, também ele, os pulmões a arder? Não seria justo agora ser ele a morrer, mesmo que isso não vingasse todos os que tinha matado? A tuberculose era uma grande sacanice. Tinha cinco anos quando o seu pai se torcia de dores antes de cuspir um sangue preto, e ainda se lembrava. Vivera desde sempre com o cheiro a sangue.

Enquanto dormia, Paolo tinha ido embora. Com o Luís? Com a Délia? Com o Luís e a Délia? Se fosse esse o caso, arranjaria maneira de morrer naquele mesmo dia, porque a vida deixaria de ser suportável.

Secou-se com a manga e saiu do quarto. No corredor, ninguém. Mas ouvia cochichos e risos. Bateu à porta de Luís.

-Quem é?

-Angel!

-Só um minuto!

Ruídos abafados, passos; Luís apareceu, com os cabelos numa revolução, na ombreira da porta-

-Onde está Paolo? - perguntou Angel.

-Não sei.

-Vi-o com os animais, debaixo do guarda-vento! - disse então a voz de Délia, atrás de Luís.

Angel olhou Luís no fundo dos olhos. Depois, contra todas as expectativas, sorriu. Luís não entendeu o sentido daquele sorriso; mas, para Angel, era um dia belo, um dia verdadeiramente belo que começara. Mais um dia ganho à morte, com Paolo, que esperava por si debaixo do guarda-vento. Pouco importava que Luís tivesse passado a noite com Délia, pouco importava a felicidade dos outros.

-Dá-me dinheiro - pediu. - Vou levar o pequeno até ao porto e oferecer-lhe uma boa refeição.

Luís acenou com a cabeça, encostou a porta e depois regressou, estendendo duas notas a Angel.

-Vê se comes, tu também, uma boa refeição. Eu cá compro quadros.

Piscou-lhe o olho.

-Obrigado. - disse Angel.

Deu meia volta e desceu, fazendo estalar os degraus da escada. Já não sentia ciúme nenhum. Délia podia fazer o que lhe apetecesse, e Luís podia montar um museu inteiro, ele estava-se nas tintas! Paolo não o  tinha abandonado! Só se tinha posto a pé cedo.

Mas Paolo já não estava debaixo do guarda-vento, e o burro desaparecera. Angel seguiu as marcas dos seus cascos na lama do pátio. Teve a sensação de estarem a espetar-lhe uma faca no ventre. O Paolo! Tinha partido! Sozinho! O que é que acontecera? Que ideia maluca poderia ter-lhe passado pela cabeça? Correu até ao cavalo, puxou-o pelas rédeas, depois montou-o e partiu a galope. Os cascos do burro tinham deixado marcas de lama no asfalto, mas não até suficientemente longe para o conduzirem numa direção precisa. Sem reflectir, Angel disparou direito ao porto. Começava a conhecer Paolo. Era ali que devia procurá-lo, no local onde as traineiras partem e voltam, no local onde os pintores pintam.

As Lágrimas do AssassinoWhere stories live. Discover now