Capítulo 14

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Os cascos do cavalo martelavam o asfalto, as suas narinas tremiam; e Angel, em pé sobre os estribos, gritava o nome de Paolo. Já só via manchas de cores, como no quadro de Délia e vultos de contornos imprecisos que fugiam à sua frente.
-Doido! Doido! - gritavam as pessoas. Angel e o seu cavalo rasgavam a multidão, lançavam-se em direção aos barcos, saltavam por cima das amarras esticadas, os montes de pipas, os grupos de pescadores à linha da e as redes de peixe. Entre o homem e o cavalo, já não se sabia quem relinchava. Ambos tinham olhos febris.
-Chamem a policia!- gritou uma mulher.
-E o hospital psiquiátrico -acrescentou outra.
A cada sobressalto do cavalo, as abas do casaco de Angel voavam e ondulavam em seu redor. Parecia um fantasma saído do nada, uma criatura de dor, perdida num mundo que não era o seu.
Finalmente, a aparição chegou ao fim do cais. O cavalo empinou em frente ao mar. Novamente, o homem gritou um nome. Paolo! Atrás de si, o porto recompunha-se do susto, entontecido. Nunca ninguém assistirá a um espetáculo assim. Era preciso alertar as autoridades.
Mas enquanto as linhas telefônicas vibravam, o homem louco, que evidentemente não encontrará o que procurava, desapareceu. Quando a polícia chegou ao porto, já lá não estava. Vários mirones fizeram a sua descrição: os testemunhos coincidiam, e seria fácil pôr a circular o seu retrato-robot. E o homem, estragara alguma coisa? Sim. Dera cabo de montes de redes vazias e esmagara peixes mortos. E magoara alguém? Sim! Provocara a queda de um pescador assustado nas águas salgadas e frias do porto. Muito bem. Ia-se procurar aquele homem para o interrogar, e depois via-se. Por precaução, ia-se consultar os ficheiros da polícia das outras províncias e divulgar a sua descrição até Santiago.
Angel voltara a partir, a galope sobre o seu cavalo, os olhos marejados de lágrimas. Instintivamente, seguia a costa, primeiro pelas estradas alcatroadas, depois pelos caminhos selvagens onde o vento curva as ervas. Sempre a galope, os pulmões cheios de fogo, continuava a gritar o nome de Paolo. E se o pequeno se tinha deixado levar por malfeitores? Por mercadores de escravos? E se tinha escorregado? E se se tinha afogado?
-Paolooo! Paolooo!
De repente, Angel viu o burro, que pastava na borda da falésia. Puxou as rédeas do seu cavalo para abrandar a marcha. O seu coração parara. Dali, não se via a criança. A passo, a passo, devagar, isso... O que era preciso era não o assustar.
Quando contornava um arbusto espinhoso, viu a pequena silhueta de Paolo, mesmo atrás do burro. O coração de Angel recomeçou a bater. Mas que estaria ele a preparar, ali sozinho, sentado na beira do penhasco? Angel desceu do cavalo, e, silencioso como uma serpente, avançou em direção ao rapaz. O vento sibilava-lhe aos ouvidos. O frio cortava. O mar gigantesco rebentava, à frente, e a falésia balançava como um barco em apuros.
-Paolo... - murmurou Angel.
O rapaz olhou por cima do ombro. Ainda os separavam dois ou três metros.
-Vou saltar - disse ele.
Angel conteve um grito. Pequenas pedras já desfaziam debaixo dos dedos da criança em lágrimas. Um nada bastaria para que ele se lançasse no vazio.
-Porque queres saltar?
-Para morrer.
- E por que queres morrer?
Paolo não respondeu e voltou a cabeça para o mar. Angel deu um passo em frente, como quem joga ao " 1,2,3... Macaquinho chinês ", e depois ficou imóvel, sentindo a fragilidade do fio que ainda segurava o rapaz à terra, à vida.
- Posso ir até junto de ti? - perguntou.
-Não. Não me vais deixar saltar.
- Por que é que o faria?
Paolo olhou para Angel.
-Na tua opinião, por que é que eu não te deixaria saltar?
- Porque...
O burro abanou as orelhas.
-Porque tu fazes tudo para me contrariar - acabou Paolo por responder.
-A verdadeira razão não é essa.
-Aí não? Então por que é que mataste os meus pais? Por que é que foste para minha casa? Por que é que me deste uma raposa?
Angel apressou-se a pensar.
- Fiz tudo isso, é verdade - disse. - Porquê? Porque sou um desajeitado.
Um sorriso quase invisível estremeceu nos lábios do pequeno.
-Muito desajeitado - admitiu.
Depois o seu rosto voltou a ensombrar-se:
- Agora vou saltar.
-Espera. Ainda não acabei de falar.
O cavalo resfolegou. Pássaros gritaram no céu, acima deles. Entre duas nuvens esfiapadas, e apesar de ser dia, via-se a lua.
- O Luís deu-me duas notas - disse Angel. - Uma para ti e outra para mim. Queria oferecer-te uma boa refeição, na cidade.
-Não tenho fome.
-Depois, podíamos ir ver as montras, os barcos, sonhar com uma coisa qualquer, com outra vida.
- Não tenho...
- Espera!- interrompeu Angel. - O que eu te quero dizer é isto. A verdadeira razão. Andei à tua procura no porto, chamei por ti por todo o lado, na cidade. Sabes porquê?
Paolo crispou os dedos e sentiu as pedras minúsculas debaixo das unhas.
- Porque gostas muito de mim? - perguntou.
- Sim.
Enquanto falava, Angel acabara por se aproximar. Agora já só um metro os separava. Via os olhos vermelhos de Paolo, as suas bochechas, onde traços brancos desenhavam meandros, embocaduras de rios, um imenso delta.
- Gostas mesmo de mim?
- Mesmo.
Angel viu-o dar um impulso com as pernas contra a parede da rocha. Viu que se erguia ligeiramente e o seu corpo balançava para diante, recortado no azul pálido do céu. Angel deu um grito curto e atirou-se para a frente, as mãos estendidas.
Houve uma confusão de dedos, de tecidos, de gestos, de pedras de respirações entrecortadas, de gritos. Angel fechara os braços em redor do tronco magro de Paolo. Segurava-o bem. Toda a sua força de homem estava concentrada nos seus braços. Rastejou para trás, longe, para longe do bordo do penhasco, com o pequeno debatendo-se contra si.
Quando o perigo passou, Angel segurou Paolo pelos ombros, contra o chão. Os seus olhares cruzaram-se.
- Mas tu nunca vais ser a minha mãe... - sussurrou Paolo.
- É verdade - respondeu Angel.
Sentou-se no chão,pegou no corpo do pequeno, envolveu-o num abraço e embalou-o docemente. Sem se dar conta, começou a cantar. Que canção era aquela, que lhe aflorava aos lábios vinda das profundezas da memória? Fora a sua própria mãe que um dia lha cantara, era ele tão pequeno que não compreendia que ela estava quase a morrer? Ou roubara-a a alguém? Tê-la-ia um dia ouvido por uma janela aberta, e roubado, como fizera com tudo o resto? Pouco importava. Agora cantava-a para Paolo com a sinceridade daqueles que nunca cantaram antes e cuja voz de súbito se eleva, por necessidade, apenas empenhados em reconfortar.
- Não passo de um assassino - murmurou -, mas uma coisa eu sei... Quando estamos tristes, e temos a sorte de ter um ombro onde chorar, não devemos hesitar.
Abraçava Paolo ainda com mais força.
- Chora - acrescentou.
E enquanto chorava, Paolo sentiu o rebuçado da felicidade, escondido numa prega do bolso das suas calças, pressionando-lhe a coxa, como para lhe provar que estava bem vivo.

As Lágrimas do AssassinoOnde histórias criam vida. Descubra agora