Capítulo 18

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" Como é difícil viver", dizia Paolo para si próprio. "E como tudo é tão complicado, retorcido, torturado, como as árvores secas e mortas da pampa".

Enquanto andava, tocava no rebuçado amarelo, no interior, do seu bolso, com a ponta dos dedos. Num certo sentido, podia pensar-se que lhe tinha trazido mesmo felicidade, já que Angel e ele deixavam Punta Arenas livres e ricos... Mas, ainda assim, duvidava dos poderes do rebuçado. Afinal, a felicidade não se devia parecer com um burro na noite fria, no bordo de uma falésia que se desmorona, e da qual nos arriscamos a cair a qualquer momento. A existir, a felicidade devia antes parecer-se com a alcatifa do banco, com o aquecimento, com a ovelha e a sua lã espessa. Devia ser um pai, uma mãe que sabe pegar no seu filho ao colo, amigos que não se vão embora na maior para fazerem a volta ao mundo, mulheres que se contentam com pintar portos de pesca e que não dão desenhos à polícia...

Até ver, contudo, Paolo devia era ficar satisfeito com o que tinha: as notas roubadas e Angel. Angel com a sua faca.

-Tenho fome - disse.

-Também eu.

- Doem-me as pernas.

-Queres que eu te leve ao colo?

-Não aguentas muito tempo. Sou pesado.

-Para mim, és leve.

Angel parou, pegou em Paolo e passou-o por trás da cabeça, para o sentar sobre os seus ombros. A noite estava muito clara. Uma lua enorme seguia-os, fazendo de lampião. No fundo da falésia, as ondas rebentavam sem descanso. Já há muito que tinham passado o lugar onde Paolo quisera saltar.

-O alpinista terá morrido? - disse Paolo.

Angel esboçou um sorriso que ele não viu, mas que ouviu. Passara muito pouco tempo desde o seu encontro com o belga, e, contudo, tinham a impressão de estarem a recordar um período longínquo, ante-diluviano.

-O Luís e a Délia...

-Deixa esses dois onde estão. Nunca mais os veremos, e ainda bem.

Angel prestava uma atenção redobrada às pedras, aos buracos do caminho. Nas suas costas, a criança balançava-se suavemente; formavam um cómico animal com duas cabeças.

-Já estiveste apaixonado? - perguntou subitamente Paolo.

-Acho que ... Não sei.

-Isso magoa?

-No princípio, não. Depois, sim.

-Mas pode magoar os outros?

Angel expeliu o ar pelas narinas, ruidosamente, como um cavalo. Aguentaria caminhar a noite inteira com o seu fardo, mas para responder a perguntas difíceis como aquelas, tinha de pensar, para não dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça.

-Estás a perguntar isso porque o Luís te magoou, é?

-Um bocadinho.

-Traiu-nos - declarou Angel.

-E tu, também me vais trair?

-Nunca Paolo. Nunca.

Paolo guardou para si as outras mil perguntas que o atormentavam.

Continuaram a caminhar em silêncio. Passado um pouco, Angel sentiu que Paolo adormecia, arriscando-se a cair. À sua volta, não havia qualquer abrigo: só o caminho,as pedras, a falésia e a planície. Era o cúmulo: ter aquele dinheiro todo e nem sequer comprar um pouco de descanso e de calor!

Angel desceu a criança dos ombros e tomou-a nos braços. A cabeça do pequeno encostou-se no seu peito. O seu corpo amolecera. Deixara-se vencer pelo sono.

As Lágrimas do AssassinoWhere stories live. Discover now