Capitulo 1

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Adriana

— Ei, princesa. Posso saber o quê você está fazendo? — A voz de papai soou rouca.
Fiz uma carreta olhando para o caderno em minhas mãos, insatisfeita com o resultado.
— Nada demais. Apenas rabiscos. — Disse colocando o caderno em meu lado.
Ele me olhou com certa desaprovação. Seus olhos sempre tão doces e expressivos. Eu reconhecia-me em muitos dos seus traços.
— Você é uma artista, filha. As paredes da nossa casa rabiscadas de diversas cores, nunca foi um feito comum de criança. Eu não vou negar que a principio podia ser que sim. — Ele sentou-se ao meu lado e me abraçou. — Você sempre preferiu as tintas e lápis de colorir, do que as bonecas. Lembro que aos 8 anos você fez um retrato de família e presenteou a mim e sua mãe no natal. — ele depositou um beijo cálido em meus cabelos.
Sorri.
— Você ainda tem uma parte da parede do seu escritório com alguns desenhos meus. Não entendo porque você ainda não cobriu aquela parte depois de tantos anos.
— Eu nunca consegui.
— Por quê? — Inquiri.
— Porque eu acredito na sua arte. — Seus olhos se encontram com os meus por alguns instantes. — Eu nunca tive dúvidas que minha doce garotinha pode colorir o mundo. A parede do meu escritório é apenas uma de suas muitas obras, carregadas de boas memórias. —disse com a voz carregada de orgulho.
— Ah, aí estão vocês. — Mamãe surgiu tomando toda a nossa atenção. Com os olhos saudosos percorreu entre mim e o papai e, por um instante pude ver tristeza neles.
– Mamãe, você está bem? – Sai dos braços de papai e corri para abraçá-la. Senti meu pai se unir ao nosso abraço como sempre fazíamos.
– Você precisa voltar agora. – Ela murmurou.
Eu não entendia o quê essas palavras significavam, mas foi como se meu coração estivesse sendo apertado com toda força.
Ela tomou meu rosto entre suas mãos.
– Me ouça com atenção. Você precisa voltar e lutar. Nunca duvide da sua força interior e da sua capacidade.
– Eu não entendo...
– Filha, muitas coisas na vida não tem uma explicação lógica e imediata. Não se trata do "porque" é o que tem que ser... Nós te amamos!
– Eu também os amo! — as palavras saíram urgente de meus lábios.
– Agora faça o que estamos te pedindo. – Ela acariciou meus cabelos e deixou um beijo cálido em minha fronte. Nos abraçamos mais uma vez. – Lembra quando brincávamos de esconder no jardim? Vamos contar até três e você corre o mais rápido que puder. 1, 2, 3.
– Papai, mãe. Não! Eu imploro.

– Adriana, calma. – Matteo, exclamou me abraçando forte.

        – Me solta, Matteo! – Rosnei tentando me livrar do seu aperto.

– Eu preciso que você fique calma ou vou precisarei chamar a enfermeira.

Afundei meu rosto em seu peito, e cravei minhas unhas em seus braços. Ele acariciou meus cabelos sem nada dizer. Meu corpo se convulsionando em soluços abafados.
– Eles partiram Matteo.
– Sim, meu amor. Eu sinto muito! – disse com pesar. — Os socorristas encontram meu número no seu telefone e me ligaram pedindo para eu vir até o hospital. – Ele fez uma pausa respirando fundo. – Você teve uma crise nervosa no local do acidente.
As poucos as lembranças me golpearam forte demais para eu conseguir dizer algo. O quê poderia dizer agora, para mudar os fatos? Nada os traria de volta.
           – Eu quero sair desse lugar, Matteo. - Exclamei.
– Você está em observação. Não pode sair daqui até que os médicos te deem alta. – Sua voz era contida.
Olhei para o soro na minha veia, e puxei a agulha com toda a força, lançando-a longe. Matteo praguejou algo, mas, eu ignorei.
– Por favor, pegue minhas roupas. – Disse descendo da cama. Ele ficou ali, estático, como se estivesse pensando no que fazer. Uma enfermeira entrou no quarto e nos olhou assustada.
– Eu preciso sair daqui. – Disse, não dando espaço para seus protestos.
Ela parecia ter quase a mesma idade da minha mãe. Me perguntei se ela teria filhos? Talvez, eles estivessem em casa ansiosos para ela chegar do trabalho. E, mesmo cansada de um plantão estressante e cheirando a morte, eles teriam o calor do abraço de uma mãe que eu nunca mais teria.
– Você precisa ficar mais algumas horas em observação, Adriana. — ela balbuciou.
Suspirei tentando me manter firme.
– Eu preciso sair desse lugar. — fiz uma pausa, sentindo meus batimentos cada vez mais rápidos É preciso enterrar os mortos. – Murmurei.
Compaixão brilhou em seus olhos.
– Eu sinto muito por sua perda! — ela parecia mesmo se importar com o que acabou de dizer, mas talvez esse fosse ser campa decente, fizesse parte do seu trabalho. — Você vai precisar assinar um termo de responsabilidade antes de sair.
                   – Obrigada!

                                        ***************

Assim que Matteo estacionou o carro em frente a minha casa, eu pulei para fora o mais rápido que pude. Fechei os olhos sentindo o frio cortante. Eu precisava sentir qualquer outra sensação oposta à dor que queimava meu ser. Forcei-me a caminhar. Eu sentia os olhos de Matteo me fitando de longe. Abri a porta e senti meu corpo fraquejar e ser amparado  pelos seus braços.
– Adriana, você está bem? – Perguntou ele preocupado.
Senti as lágrimas banharem meu rosto. Como eu poderia dizer em palavras o que sentida? Todas as palavras existentes não eram capazes de expressar tudo que eu sentia. Ele passou os braços entre minhas pernas içando-me do chão. Encostei minha cabeça contra seu peito enquanto ele subia as escadas e logo estávamos em meu quarto.
– Você precisa de um banho e descansar um pouco. – Ele falou me colocando no chão e me ajudando a tirar minha roupa. – Enquanto você toma banho eu vou preparar algo para você comer. – Ele tocou meu rosto falando cada palavra olhando nos meus olhos. Eu apenas assenti. – Lana, já está a caminho. Ela vai estar com você enquanto eu resolvo com o Dr. Julius os tramites para o velório.
– Obrigada! – Murmurei.
– Ei, não precisa agradecer. – Ele depositou um beijo na minha testa antes de deixar o quarto.

Liguei o chuveiro e enquanto a água caía sobre meu corpo com seu intenso jato quente. Eu chorei desejando que de alguma forma a água levasse minha dor. A cena do acidente passava na minha mente como um filme. As últimas palavras da minha mãe em seus últimos instantes. Aquilo que fora como um sonho no hospital.
– Mãe, Pai. Eu não sou tão forte como vocês acreditavam! – Gritei socando a parede à minha frente com toda a força que eu podia. A água ganhou uma tonalidade vermelha, mas eu não conseguia sentir nada que não fosse a agonia e o desespero de perder meus pais. Eu gritei exteriorizando toda a minha dor. A maior perda é a morte dentro de nós enquanto vivemos.
– Adriana, eu vim o mais rápido que pude. – A voz suave de Lana quebrou o silêncio.
Lana se aproximou desligado o chuveiro e me ajudou a me levantar passando em volta do meu corpo uma toalha. Caminhamos para meu quarto. Ela me olhava de forma pesaroso, enquanto me ajuda a me vestir como uma criança.
– O quê aconteceu com as suas mãos, Adriana? – Inquiriu
– Isso não é nada demais. – Dei de ombros. Eu não queria ter que falar sobre meu surto ou seja lá o que aquilo foi.
Ela me envolveu em seus braços.
– Tudo vai ficar bem. Estamos aqui por você. Agora me deixe cuidar de você.
Sentei na minha cama e abracei meus joelhos tentando controlar meus soluços. Lana, se aproximou trazendo uma caixa de primeiros socorros.
– Isso vai doer um pouco. – Ela molhou o algodão em uma solução antisséptica, e com cuidado segurou minha mão depositando de leve o produto. Me encolhi com a ardência. – Adriana, eu não posso dizer que entendo sua dor, porque eu não perdi meus pais e não passei por uma situação tão devastadora como a que você está passando. Mas, de alguma forma eu também sou órfã de pais vivos. – Ela murmurou sem desviar os olhos do que estava fazendo em minhas mãos. – Mas, isso não muda o fato de eu estar devastada por vê-la assim. Eleonora e Carlos sempre foram como meus tios e você a irmã que eu nunca tive.
Eu conheci Lana no ensino médio e desde nosso primeiro contato nos encantamos uma pela outra. Sempre inseparáveis. Ela sempre radiante e travessa. Quando comecei a namorar o Matteo ela nunca o aprovou. Mesmo eu afirmando que nada ia mudar. De alguma forma isso a feriu, e mesmo assim ela continuou ao meu lado.
– Eles também te amam, Lana... Te amavam – Murmurei. – Obrigada por estar aqui comigo. Eu... só me sinto perdida.

***

Então é aqui que tudo termina. Aqui nos despedimos de quem amamos. A realidade que golpeia forte nossa face.
As flores enfiadas com cartões com frases frias de "Eu sinto muito". "Eleonora e Carlos sentiremos sua fala". Fomos amigos durante os grandes bailes na mansão Reymondi e nos coquetéis da empresa e nas viagens. Mas, agora não temos tempo para ir ao funeral.
Seria mais sincero se esses cartões contivessem coisas que fizessem algum sentindo, coisas que me fizessem sentir melhor.
Passei dias chorando e vagando pela casa. Acordando durante a noite como uma criança de 5 anos e indo para o quarto dos pais, buscar o conforto de seus braços como fiz inúmeras vezes na infância e mesmo na minha fase adulta era algo que eu ainda fazia. Não por medo do escuro ou do "monstro" do armário, mas, era por amor e querer estar perto. Saber que não é vergonha, algumas vezes dormir entre as duas pessoas em que você mais ama na vida. O amor mais verdadeiro que eu poderia receber. Durante todos esses dias eu corri para o quarto deles, mas ao contrário das outras vezes, havia apenas o vazio, e as recordações. Eu me permiti chorar, gritar ou até mesmo quebrar algumas coisas exteriorizando o quando eu estava quebrada. Um cristal quebrado jamais pode ser restaurado. Como meus pais poderiam acreditar que eu poderia colorir o mundo, sendo que sem eles nada tinham cor.
Deveria ter um terceiro caixão do lado do deles. Se por algum motivo eu tivesse no carro, talvez, estaríamos os três juntos ali. Um pensamento egoísta que me invadia a todo momento, mas não consigo extirpá-lo da minha mente.
– Carlos Reymond e Eleonora Reymond. Pais, e cidadãos valorosos. Vocês partem deixando um grande legado. – O padre disse me trazendo a realidade. – Que a paz esteja convosco. – Ele fez algumas orações e disse palavras complicadas. Eu apenas as repetia como um papagaio, assim como Matteo que estava ao meu lado me abraçando. E do outro lado Lana fazia o mesmo com os olhos perdidos em algum lugar.
Dr. Julius Almeida Advogado da família estava parado com os olhos indecifráveis. A todo tempo ele olhava para o relógio e ajeitava a gravata. Talvez, ele fosse um dos "amigos" dos meus pais, que não arranjou uma desculpa para fugir do velório. Tentei ignorar esse fato para não ir até ele dispensá-lo de seu fardo. Afinal ele ajudou o Matteo com todos os tramites do velório.
Assim que o padre terminou. Ele me passou a palavra.
– Pai e mãe. Eu sinto que estou desmoronando. – Suspirei buscando forças. – Vocês me ensinaram tantas coisas... Incentivaram-me a estudar, pois diziam que estudar era muito importante. Papai, você me ensinou a andar de bicicleta, e quando eu cai e disse que não queria mais tentar mais, você me incentivou a continuar. Mamãe cuidou dos meus machucados e quando eu consegui andar de bicicleta sem a ajuda das rodinhas vocês vibraram comigo. E, passamos a fazer longos passeios de bicicleta, juntos. Ali, uma lição sobre não desistir na primeira queda, nem na segunda ou terceira... Tudo era sobre tentar e lutar. Mamãe, você me deu meu primeiro salto alto, e meu primeiro kit de maquiagem. Mais uma vez eu cai tentando me equilibrar nos meus lindos sapatos que mais parecida como uma arma mortal disfarçada, em forma de uma grande marca. – Sorri com a lembrança. – Você disse que eu não precisava usar saltos se eu não quisesse, mas que deveria tentar. Alguns dias depois eu já andava lindamente com eles. Eu descobri que o aperto do meu dedo poderia melhorar com um numero maior. Você me disse que maquiagem era apenas um recuso feminino para destacar a beleza. Meu rosto era como uma tela e eu poderia brincar com as formas e as cores neles assim como nas minhas telas. Mãe, você me ensinou a fazer a torta especial de maça que você dizia ter conquistado o papai. Vocês me ensinaram o que é o real espírito de uma família. – Envolvi meus braços em volta do meu corpo e fechei meus olhos. – De tantas coisas quê vocês me ensinaram, faltou a parte de como seria viver em um mundo sem vocês. – As lágrimas banhavam meu rosto como ondas fortes sobre as rochas. – Vocês não vão poder estar comigo no dia da minha formatura na faculdade... Papai, você não vai entrar na igreja segurando o meu braço enquanto caminha comigo para me entregar ao meu marido. Vocês não vão estar comigo no dia do nascimento do meu filho. E, todas as vezes que eu precisar de respostas eu vou apenas encontrar o silêncio. Eu odeio o fato de que um acidente estúpido tenha encerrado tão cedo nossa história. E, eu não sou tão forte como vocês acreditavam. Sabe por quê? Todas as vezes que eu cai vocês estiveram lá por mim. Porque sem vocês eu não sou nada. Meu mundo não existe se vocês não estiverem nele. – Meu corpo pesou e eu cai de joelhos no chão coberto por uma fina camada de neve. Com as mãos em meu rosto eu tentei abafar meu choro. Todos à minha volta respeitaram meu momento, respeitam minha dor. Eu era grata por isso. Não existe coisa mais chata que alguém querer chorar pelos seus mortos e alguém falar para não chorar. Apesar de que eu já fiz isso algumas vezes. Agora sei porque me olhavam estranho.
Algum tempo depois notei que o padre já havia ido embora assim como o Dr. Julius. Lana e Matteo permaneceram ao meu lado. Eles eram as únicas pessoas que havia me restado.

O Que a Vida me Roubou. Degustação. Where stories live. Discover now