O Último Cadáver Falante

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Praticamente, uma sopa de ossos. Sopas são ótimas, principalmente as do meu marido. São sua especialidade. Mas usar algo tão bom para definir o estado de um corpo sem vida me parece inadequado. Se bem que é uma definição que abrange tudo. Como cheguei a esse estado meio líquido, meio sólido? Simples. Foi na reunião com Owen Mellard. Eram 08:15 a.m. e eu estava indo em direção ao elevador. Eu aperto no botão e as portas se abrem. O elevador já estava em meu andar. Somente entrei e quando as portas iam se fechando Avery entra. Seu rosto e olhos estavam vermelhos. Ela estava chorando. Apertamos andares diferentes: eu ia para o centésimo sétimo andar e ela para o térreo. O elevador começou a subir e o silêncio logo se instalou no ambiente. Eu a encarei e ela devolveu cruzando os braços e se encolhendo no canto do elevador. Ela era forte, mas não queria que a visse chorar. Nós mulheres somos assim. Pelo menos as que eu conheço.

- Tudo bem? - perguntei quebrando aquele silêncio.

- Meu pai teve um infarto. A vizinha acabou de me ligar. - falou ela entre soluços e lágrimas. - Ele estava falando com meu irmão que está em um voo... Que foi sequestrado.

- Avery... Eu sinto muito. - falei me aproximando e tocando em seu ombro. - Quer que te leve até a recepção? - sou um monstro como pessoa, mas reconheço quando alguém precisa de ajuda.

- Não... Obrigado. Você tem uma reunião. - assim que terminou a frase, a porta se abriu no meu andar. Eu parei, olhei por alguns segundos e olhei Avery limpando as lágrimas. Eu sai do elevador e me despedi.

- Tchau. Se cuida. Não se preocupe. Tudo ficará bem. - a porta se fechou e só conseguiu me despedir balançando minha mão.

Segui pelo saguão do Windows on the World e cheguei até a recepcionista. Ela me guiou até a mesa 9 com visão ampla para o Rio Hudson e a cidade de Nova Jersey. Owen Mellard já estava lá a minha espera. Sentei-me, estendi minha mão e ele retribuiu com um aperto caloroso.

- Prazer, sou Caroline Grissom e o senhor deve ser Owen Mellard.

- Sou eu mesmo, só que não sou senhor. Pode me chamar de Owen. - falou com bom humor e com um sorriso branco e atrativo.

- Tudo bem... Owen. - falei devolvendo o bom humor dele. - Então, vamos falar sobre a campanha do prefeito Gillies.

- Claro. Vou pedir um café antes. - ele estendeu a mão e a atendente entendeu o recado.

- Que impressão espera que a campanha dele passe? Um bom samaritano? Um homem de família? - disse ela pegando um bloquinho de notas de sua bolsa e anotando.

- Quero que diga Eu sou um homem que luta contra a desigualdade. Eu sou um homem que procura sempre o melhor para Nova York. Eu sou o prefeito Terrance Gillies. - disse enquanto gesticulava indicando o quão grande deveria ser aquela campanha.

- Já tenho algo em mente. Ele fez reformas em quatro escolas no Queens e duas no Brooklyn, não foi? - falei apontando com a caneta para Owen que só confirmou com a cabeça. - Eu vou querer os nomes dessas escolas.

- O que pretende? - falou ele curioso com o que eu estava projetando.

- Usar as melhorias que ele fez nas escolas junto de um rostinho bonito de criança. - falei gesticulando minhas mãos a uma distância considerável do rosto de Owen a ponto de lhe causar fascínio. - Ninguém resiste a melhorias na educação e crianças. Ninguém.

- Srta. Grissom... - disse ele segurando minhas mãos.

- Pode me chamar de Caroline.

- Caroline, você foi a melhor escolha que fizemos. - falou ele dando um sorriso que ia de ponta a ponta. - Aceitaria sair comigo...

- Eu sou casada. - falei mostrando a aliança em meu dedo.

- Iremos debater sobre a campanha do prefeito Gillies.

- Se for assim e somente assim, eu vou... - disse sorrindo. Minhas intenções, realmente, eram de desenvolver a campanha. As do Owen Mellard, eu já não sei e nem saberei.

Um barulho de motor se aproximando é escutado a alguns metros de distância. Quando consegui ver o avião, já era tarde. Ele colidiu com a Torre Norte e explodiu. Eu fui arremessada pela janela. Cai 107 andares. Minha vida passou por mim em meios aos cacos de vidros. Vi meu casamento. O parto do meu filho. Os poucos momentos em que fui amorosa com Anthony. Tudo isso desapareceu quando meu corpo entrou em contato com o teto de um carro vermelho estacionado na frente da Torre Norte. O resto seguiu o fluxo. Correria e gritos. Ambulâncias indo e vindo. Meu corpo foi retirado do capô e foi trazido para esse necrotério.

Ouvi barulhos de passos. A porta da gaveta se abriu e mesa onde eu estava foi puxada. Só ouvi a voz de meu marido chorando.

- Sim. É minha mulher... - ele pôs a mão na boca tentando abafar os barulhos típicos de choro.

- Senhor Hernandez, eu sinto muito. - Nesse momento parei e pensei: ele é meu marido, mas é como se fosse um conhecido. Meu medo de me prender a ele fez com que qualquer um nos considerasse amigos, vizinhos, conhecidos, exceto marido e mulher.

- Temos um filho... Eu não sei como dizer isso a ele. - Voltei a pensar: meu filho. O filho a quem por necessidade não pude ver crescer nem dar os primeiros passos ou dizer as primeiras palavras. Sou mãe dele e não agi como tal. Como ele se sentirá? Na verdade, talvez seja mais fácil para ele. Sempre fui vagas memórias na vida dele e agora serei mais uma lembrança qualquer.

Ouvi o choro e lamento do homem que mais me amou e a quem menos demonstrei amar. Notei que eu não me despedi do meu filho antes do trabalho, não me despedi do meu marido antes do trabalho. Não me despedi de quem mais eu amava. Todavia, me despedi da pessoa por quem nutri um sentimento de aversão. Se Anthony decidir ficar com Cinthya, eu acho que ficaria feliz, pois assim Cody teria uma mãe presente e meu marido teria uma mulher que retribui-se na mesma intensidade o amor dele. Eu não aproveite tudo o que tinha de bom e agora não posso mais. Eu me arrependo disso. Eu queria ter sido uma mãe melhor, uma esposa melhor, uma irmã melhor, uma filha melhor. Eu queria poder ter feito diferente. Talvez, assim estivesse viva.

Centésimo Sétimo AndarWhere stories live. Discover now