Capítulo 1

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Era uma manhã de inverno igual a todas as outras. Chovia, mas sem uma única brisa. A lareira crepitava enquanto espalhava conforto na taberna. Mike estava, como de costume, nos estábulos a tratar dos animais. Mary veio à sua procura. Mary era uma jovem baixa e morena, bonita e original. Ela tinha soltos os seus cabelos curtos de um tom de chocolate a esvoaçarem enquanto corria para se abrigar da chuva. Mike por outro lado era alto e tinha apenas uma aparência distinta. A sua pele era branca e tinha uma magreza bem-feita. A sua beleza culminava nos seus belos olhos acastanhados.

- Mike! – Arfava Mary. – Tenho estado à tua procura... Ainda passei pela taberna... Querem que cante na celebração de amanhã! – Mary tinha uma bela e afinada voz. – Pensei que podias cantar comigo... - Mike também cantava muito bem. Havia sido através da música que nascera a sua amizade. Mike pensou um pouco.

- Claro, porque não?! – Mary abraçou-o. – Mas gostava de estar contigo depois, durante o resto da celebração! – Mary saiu de seus braços segurando-os. Foi a vez de ela hesitar.

- Pensando bem, porque não? - Mike sorriu. O seu sorriso fazia parecer com que os seus olhos fossem por natureza rasgados. - Mas, ouve! Tu não podes ir assim vestido! - Mary considerava-o como um irmão. Ela não se importava muito com futilidades mas não queria que ficassem mal vistos, já que iam cantar.

- Não me digas?! Tu também não! – Cada um olhou bem para a sua roupa. Ele tinha umas calças beges de tecido e uma capa sem capuz. Ela tinha umas calças de equitação roubadas ao irmão, um corpete grenat de linho também com uma capa, no entanto com capuz. Ambos caíram na gargalhada.

- Porque é que há uma celebração amanhã mesmo? – Mike era distraído e esquecido, e Mary já esperava esta pergunta mais cedo ou mais tarde.

- Do que eu percebi, vai regressar a mulher do governador: a mãe da Dahlia. – Mary fez uma pausa. – Pensando bem já não vou! Não quero participar nada que celebre aquela gente... - Mike correu a tapar-lhe a boca.

- Olha que alguém te ouve! – Mike olhou em volta e esperou uns segundos em silêncio. - Não queremos que te tirem a casa ou o trabalho, pois não?! – Mike preocupava-se muito com Mary, e especialmente a esposa do governador não era propriamente tolerante. – É que sabes... Eu tenho visto o Gabriel a passar aqui todos os dias, várias vezes com o Jones. Levam e trazem coisas. E dão a entender que não querem ser seguidos. – Mike apesar de tudo era observador, mas Mary não ligava à vida dos outros.

- E porque é que achas isso? – Disse Mary tirando a mão de Mike esquecida na sua boca. Ela própria confirmou se alguém andava nas redondezas.

- Porque estão sempre a verificar se estão sozinhos. Ele é o irmão da Dahlia, tu conheces, certo?

- Errado! Não falo com ele, e nem nunca falei... Sei apenas quem é. Mas se se passa alguma coisa podemos descobrir. Afinal vamos somos os que vão estar por perto e cantar para eles! – Mike arqueou uma sobrancelha desconfiado.

- Pensei que não querias ir...

Mary encolheu os ombros. Podia ser que alguém desse valor e os compensasse, pensou, e piscando o olho acrescentou:

- Até porque eles não nos afetam. – Mike sorriu.

- É esse o espírito.

Mary já tinha voltado para casa assim como ele. Pelo caminho tinha trazido madeira para a lareira de sua casa. Ao jantar bateram à porta. Mike levantou-se e abriu-a. A ponta de uma espada surgiu ao nível do seu pescoço.

- Vem calmamente connosco.

Mike seguiu Gabriel até ao bosque e ambos eram seguidos por quatro outros guardas. Estavam nas traseiras da mansão abandonada. Dizia-se que esta mansão havia pertencido a uma dinastia de mestres de magia, há várias gerações extinta. A magia tinha sido abolida de Truth Valley há mais de cinquenta anos. Esta mansão era imponente, com altas colunas de mármore com símbolos pormenorizadamente esculpidos e uma escadaria em pedra negra. O contraste era belíssimo e obrigava ao respeito por esta bela arte. Gabriel encostara Mike a uma árvore. «Pelo menos não estou entre a espada e a parede...» Pensou.

- Eu sei que és o responsável pelos estábulos públicos. Amanhã preciso que tenhas preparado o teu melhor cavalo em velocidade antes de começar a celebração. Quando digo preparado, digo com os suplementos necessários: comida, agasalhos e armas. De preferência várias adagas e uma espada.

Mike arregalou os olhos.

- Como arranjo tudo isso?! – Ao emitir estas palavras a espada voltou a ameaçar o seu pescoço.

- Está tudo a ser colocado em tua casa. – Mike tentou avistar a sua casa mas a noite estava cerrada, não se via nada.

- Segunda coisa, vais fazer com que todos acreditem que foste furtado. E, como é óbvio, nada disto aconteceu. – A espada reencontrou o seu caminho para a bainha. – Um conselho: mantém-te longe dos estábulos durante a cerimónia. Pela sanidade da tua vida, não vais querer lá estar! – Gabriel acabou, mandando Mike ser acompanhado a casa por quatro guardas. Quando lá chegaram, empurraram-no para dentro e fecharam bruscamente a porta. Não havia dúvidas: algo se passava. E ele ia participar. Gabriel era novo e não pensava bem nas coisas. No estábulo estavam sempre guardas. Ele não entendia o sentido de tudo isto. Em cima da mesa estavam capas e mantas, um saco com alimentos, outro com utensílios e as armas. Porquê ele?

Na manhã seguinte, Mike foi então preparar o que lhe havia sido pedido. Pedido não, exigido em troca da sua vida! Ele continuava sem entender. Já era meio-dia e o seu trabalho estava feito. Foi então vestir-se para cantar na cerimónia. Encontrou Mary no caminho para a vila. Ela estava com um longo vestido negro de corpete com mangas justas. O cabelo permanecia solto como sempre. Foram juntos para a praça e começaram a ensaiar a um canto. Já era pôr-do-sol quando o coche chegou. A mãe de Dahlia, Salina, ocupou o seu lugar de honra e as cantorias começaram. Pouco tempo depois, Mary e Mike foram dispensados. Mary ia começar a reclamar pela falta de consideração mas Mike estava demasiado preocupado com outras coisas, e assim que se viu livre foi até aos estábulos, deixando Mary sozinha.

-Mike!? - Foi apenas o que ele ouviu ao longe. A poucos metros dos estábulos havia pilhas de feno. Mike vigiava-os a partir dali. A sua presença era indetetável. Parecia tudo normal. Pelo menos visto das traseiras. Foi então que um vulto entrou por uma das janelas superiores, desceu vagarosa, cuidadosa e silenciosamente até ao cavalo suposto. Mike não conseguia delinear o género do vulto. Rapidamente, montando o cavalo e erguendo a espada, pôs-se a galope decapitando um dos guardas e deixando o outro também sem vida.

Mike deixou de vigiar e escondeu-se apenas atrás da muralha de palha. Nem um só som veio dos estábulos. Gabriel tinha razão, ele não queria ter estado ali. Respirou fundo e preparou-se para abandonar o local. Foi então que reparou que o cavalo estava sozinho a uns metros do estábulo. Mike congelou nesse momento. Não era possível saber da sua presença ali. Nesse momento sentiu uma ponta metálica na parte de trás do seu pescoço. O vulto, agora atrás dele, fez um sinal para que se erguesse. Assim que os seus pés se afincaram no chão, em milésimas de segundo, Mike viu-se contra o feno, com um punhal apontado ao seu pescoço.

O vulto era feminino: tinha longos cabelos selvagens, um corpete com abas até ao chão, e por baixo disto, que não lhe cobria as pernas, umas calças justas de montar e umas botas altas armadas com mais adagas. Armas que ele próprio lhe tinha providenciado. Uma voz veio agressiva mas suave.

- Quem és? Qual é o teu nome? – Mike não conseguia ver ainda o rosto da interlocutora.

- Mike... o meu nome é Mike... sou o responsável pelos estábulos... - Ainda com o punhal ao pescoço foi-lhe perguntado:

- Gostas de viver assim? Na miséria da ignorância e da mentira? – Mike negou com um leve aceno para não se cortar. – Sabes montar a cavalo, manejar armas, e resolver enigmas?

Mike engoliu em seco, e gaguejou:

- Um pouco de cada...

- Então, queres finalmente mudar de vida? – Mike arregalou os olhos e viu que o punhal tinha o punho apontado para si.

Ele pegou-o tremendo e deu um passo em frente. Assim viu por fim o rosto de com quem estava a falar. Era uma mulher de feições incomuns mas belas. O mais estranhamente belo eram os seus olhos, olhos castanhos amendoados, de onde reluzia uma luz brilhante como estrelas numa noite sem igual. De seus lábios em linha reta saiu um baixo e leve assobio. O cavalo aproximou-se deles. Ela montou-o e propôs ajudá-lo a subir. Mike hesitou.

- Ou vens, ou muito provavelmente morres... - Foi incentivo suficiente, Mike subiu então para o cavalo. – Podes agarrar-te. – Ela sussurrou ao cavalo enquanto Mike colocou os seus braços em volta da sua cintura. Com um leve toque de pernas, o cavalo partiu a galope.

Vinda Dos Elementos: O RestauroWhere stories live. Discover now