A apoteose de Bianca

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Bianca não sabia que horas acordou naquele dia. Nem me é relevante eu relatar desta vez. O dia amanheceu nublado. Não o nublado que avisa a chuva próxima, bem quista e aguardada, mas aquele que fica num céu cansado de tanto ter chovido. Quando Bianca pôs o primeiro pé fora de casa e viu tudo pesado de água, sua solidão amenizou por um breve momento: o Universo, ao menos por ali, algum peso também carregava. Mas foi um momento ligeiro, para logo isolar-se do mundo mais profundamente dentro de si. Tal isolamento era involuntário, na verdade, ela lutava contra esta sensação de encolhimento dia após dia, a cada instante. Era um gosto metálico desagradável na língua, como se seu coração estivesse sendo enrolado em papel alumínio, bem apertado, para ser guardado no congelador. E nesse frio, seus pelos se eriçam e uma fina película de suor reveste sua têmpora e uma gotícula abafada escorre espremida entre seus seios.

O esforço para jogar seus passos a frente ninguém perceberia, apenas diria alguém muito sensível e de espírito perceptível: "Dormiu mal". Mas ela sabia que o próprio ar a impedia de progredir, sendo mais denso que a água do mar quando se tenta avançar com o pescoço submerso pisando a areia mole.

Visualiza na mente o ponto de ônibus, numa tentativa débil de se motivar, "não está longe, e lá você senta mais um pouco". É assim que ela trata a si própria, de você, ocasionalmente, tu. Não pensem que é por outro motivo senão pela perfeita compreensão de que seu corpo é meramente uma concha, e, portanto, sua consciência espiritual é quem fala à sua consciência física. Alias, detesta o pronome "eu", considera muito egoísta.  Franze o cenho sempre que ouve alguém o pronunciar. Eu mesmo não entendo o porquê, talvez seja como uma resposta desaforada ao Universo que vive lhe separando da natureza e do verdadeiro contato com as energias das existências. Talvez seja por ter uma excelente compreensão de tais complexidades, que ela sofre. Porque francamente, não paira sobre ela maldição maior do que a de qualquer outro ser humano. Então por que tamanho vazio lhe preenche repletamente a alma? Um dia eu acho que lhe ouvi dizer algo assim: "estou cercada e sufocada pela mediocridade." E quem convive com ela jamais pensaria que seu sorriso brilhante e macio guardaria estes tipos de amarguras. Não! Mas seu sorriso é como um chocolate derretido, que se põe no congelador e em poucos segundos se retira novamente. Seus filhos se lhe ouvissem escutariam frases como estas, soltas no ar: "Como alguém pode ser feliz enquanto há miséria por toda volta?" "Estou desligada de qualquer força que eleve!" "Sou incapaz de..." Ah! E mesmo este reticências se esconde dela com ardil. "O que sou para ser amada?".

O ônibus chegou, aliviando o medo que sentia do sujeito sujo ao seu lado. Nessas épocas, qualquer um pode ser assaltante. Mas ao se aproximar, abrindo a porta pneumática, pessoas caíram fora de tão cheio que o ônibus estava. Jovens empurravam velhos, cadeirantes eram afastados, e os pobres pediam esmolas. Preferiu ir andando ao trabalho, enfrentando os perigos das ruas. Chegaria atrasada, estava ciente, entretanto hoje não se importava.

Subiu na calçada longa do cemitério, cujo muro se estendia por milhares de metros, alto, áspero, cinzento, cheio de fungos negros e rachaduras. E foi metendo passo ante passo, olhando para os detalhes do muro, distraindo-se do caos macro polidimensional para o caos micro bidimensional. Começou a sentir fome e um peso nas panturrilhas. Voltou a palma da mão esquerda para o muro, a fim de sentir as reentrâncias pontiagudas da textura áspera, arranhando as pontas digitais e vibrando as juntas dos dedos. Sua gengiva começou a coçar e sua saliva se tornou mais espessa, gosmenta. Viu mais adiante uma mosca pousar no muro.

Ela estudou a mosca: suas asas semitransparentes, cheias de nervuras, suas seis pernas delgadas e as minúsculas garras nas extremidades. As segmentações dos olhos, que se moviam agilmente; e contou os segmentos de sua barriga. Nunca tinha visto uma mosca com tantos detalhes como ali. Provavelmente o Universo lhe presenteava com alguma ligação de maior afinidade com as existências naquele momento. Talvez sua frustração e paciência estivessem por começar a serem recompensadas, ou mesmo, compensadas. Sentiu-se ligada àquela mosca. Olhou nos seus olhos.

E desejou comê-la.

Foi um breve instante, mas suficiente para se censurar por ter tido essa vontade tão, mas tão estranha. Que nojenta! Então viu esgueirar-se por trás uma aranha camuflada na cor do muro e de um salto, abocanhou a mosca. Uma raiva ciumenta passou por sua pele suave. Rápida, como o bote da aranha, e se foi. Porém não passou despercebida, e mais uma vez envergonhou-se por ter tido este lapso tão esquisito. Seu estômago roncou. E foi aí que ficou preocupada. Sua gengiva coçava tanto que levou as unhas da mão direita à boca, para coçar com as unhas, mas notou logo que era também muito estranho, e iria se ferir, é claro. Então se controlou e coçou as gengivas com as polpas digitais, friccionando-as rapidamente. Mas a coceira só aumentou, por mais força que esfregasse, fazendo aquele barulho de borracha ralando borracha.  Ela parou ali mesmo, concentrada, olhando aquela aranha, e sem se controlar, ou desistindo de se controlar, meteu as unhas com furor nas gengivas, até que sangraram. Mas não parou. Ela sentiu primeiramente o gosto do sangue, então, quando percebeu que escorria pelo queixo algo mais gosmento que sua saliva, somente então, reteve as mãos e levando-as à frente, desviando os olhos da aranha, olhou atentamente e assustada as suas mãos, as suas unhas, com fiapos de carne gelatinosa e sangue. Sua gengiva latejava. Começou a tremer aflita, e olhou para os lados, temerosa que alguém estivesse lhe vendo. Certamente seu estado era medonho.

E sem que se desse conta, uma lagartixa verde pálida se esgueirou sorrateira e abocanhou a aranha. E neste movimento repentino, abruptamente voltou seus olhos de volta ao muro, alarmada. E viu! Não lhe restou naquele momento nenhum resquício de espírito para refrear tamanho ódio que emergiu dentro de si. Sua menstruação desceu. A fúria sequestrou todo o sangue de suas extremidades, tornando-se pálida; mas não foi uma palidez fraca e doente, era a palidez de uma serpente há muito tempo dentro da caverna sem se expor ao sol. Foi-lhe óbvio que a lagartixa queria lhe provocar, pois mastigava a aranha que se debatia, ainda segurando a mosca entre suas mandíbulas. Num impulso, cravou habilidosamente suas unhas na lagartixa e com prazer, abocanhou sua cabeça inteira, afundando os dentes em seu pescoço, sentindo na ponta da língua sua pele asquerosa. Puxou com a mão o corpo, arrancando-o da cabeça. O sangue roxo escorria entre os dedos misturando-se ao seu, já coagulado. O corpo decapitado da lagartixa se contorcia em espasmos aleatórios. Ela espremeu em sua mão, tentando fazê-la parar. Mas qual raiva voraz sentiu! Seu sangue gotejava e borbulhava do coto.

...mais força...

Não parava! Qual a solução?! Olhou com asco aqueles movimentos convulsivos, mas compreendeu seu dever. Devorou até o fim. Espero não provocar enjoo nos ventres sensíveis. Um verdadeiro observador da natureza se regozijaria em presenciar esta cena. Ela comeu a lagartixa por prazer, a aranha, por ira, e a mosca, por fome.

O que lhe restava agora? O sangue escorria com cólicas pela parte interna das coxas. Fedia. Pensou se não seriam os cadáveres do cemitério. Olhou então através do muro e vejam só! Realmente o Universo estava lhe presenteando com dons extraordinários. Dava-lhe conexões novas, interações ávidas entre todas as coisas ao seu redor. Ela pôde ver os túmulos e os vermes, ler os nomes e as datas, e sentiu seus olores. Seu estômago roncou novamente e deu-se conta que ainda tinha fome. Arrancou as próprias roupas dando à luz suas curvas e fendas secretas, não com a sensualidade civil, mas com a inocência da ignorância bestial. Envergonhou-se? Não sei, desculpem-me. Só sei que olhou para cima, quiçá averiguando se o Sol lhe espreitava. Continuava nublado. Ela sorriu. E quando vi isto, aí sim me espantei! Se eu pudesse resumir tudo que falei ate agora, resumiria naquele sorriso; porque até então, desde que parara diante do muro, julgava que a pessoa que ela era por todos os seus anos de vida havia se perdido. Mas aquele foi o sorriso da Bianca. Naquilo tudo, não estava fora de si; no oposto desta ideia, ela estava sendo mais a mulher que nascera para ser, e que jamais fora tanto, e nunca antes em toda sua vida havia se conhecido como principiava a se conhecer, ali, diante do muro. Estava começando a ser feliz, sem ter duvidas disto. Tomou distancia, recuando a rua e de um pulo místico, pousou sobre o muro, lá no alto. Observou o cemitério dali de cima, em perfeito equilíbrio, um equilíbrio impressionante. Cheirou-se, tocou-se, esfregou-se, lambeu-se e observou. Como uma lagartixa? Ou seria como uma aranha? Ou ainda, como uma mosca?

Então Bianca saltou para dentro.

Contos enrustidos da loucuraWhere stories live. Discover now