Prólogo, ou, Primeiro Conto

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Oi. Eu sou uma placenta. Nos mamíferos sou formada por meio de recrutamento de grande quantidade de material orgânico tanto da mãe quanto do embrião. Muitos recursos e energia são despendidos para que eu cresça e possa enfim desempenhar minhas funções. E sem mim, seria o fim do embrião, da reprodução. O fim do filo dos mamíferos. Mas depois que nasce o filhote, o que fazem comigo? Muitos animais me comem. Os humanos não. Eles me jogam numa lata de lixo, na melhor das hipóteses.

Está bem, não sou realmente uma placenta. Não vês sangue neste papel, nem tenho o odor extremamente desconfortável de ferro com ovo por vencer.

Na verdade sou um conto. O primeiro conto deste autor que reluta a se entregar à insanidade. Fugindo dela bravamente através de relatar as histórias que seguirão aqui. Mas sou como uma placenta. Sou o primeiro conto que deu origem a todos os outros deste livro. Mas por mim mesmo, vês que sou imprestável. Ele deveria ter me riscado e jogado fora, como bons Homo sapiens fazem com suas placentas. Os outros contos até que são razoáveis, e quem tem tempo para assistir uma TV, seria recompensado em desligá-la e ler alguns deles de uma tirada só. Mas eu não. Sou uma porcaria entre os contos. E logo eu, o infeliz colocou primeiro. Ou ele quis me homenagear ou te torturar. Mas não sou tão assim de passar vergonha. Ele que deveria se envergonhar.

Bem, já que ele não o fez, fica à vontade para me comer ou me jogar fora. Como não podes rasgar as páginas, nem seria sensato quebrar a tela, basta avançares aos próximos contos.








Ainda estás aqui?! Não me responsabilizo... ainda dá tempo de ouvir meu conselho: Pula para o conto seguinte. Não vais perder nada. E se me comeres, bom... a placenta tem até seu valor nutritivo, mas vai te dar náuseas.

Erasmo elogiou abertamente o que eu trato como terrível e destrutivo, vergonhoso e impreciso. E sou único, como cada loucura. Como cada música. E porque somente eu, ninguém a mais que eu pode contar-te a história que contarei agora, pois proibi todos os outros fantasmas de fazê-lo.

Esta é mais uma revelação. Mais que um conto, sou um fantasma. Que penetro pelas paredes e vejo o que se passa nas escondidas, dentro de gavetas proibidas. Entro nos corpos das pessoas e sinto suas vibrações, interpreto suas mentes. Não como um demônio, que tenta convencer o possuído a ser miserável, mas como uma entidade curiosa, fofoqueira. Um palhaço cheio de trapos mofados, coloridos, rotos desbotados, que quer arrancar a roupa das donzelas e guerreiros na grande festa de gala.

Então senta e lê, que eu, vendo tudo, irei te contar. Entretanto, não te sintas tão à vontade lendo. Não leias nu, ou em andrajos. Evita ler no banheiro, por favor. Estou te vendo. Não penses que estás só e podes fazer tudo... E por favor, acima de tudo, não tires catota enquanto lês! Até uma coçadinha, pode ser, mas tirar catota, não. É nojento! Quem pode discutir isso? É uma das verdades absolutas do universo. E ainda tem gente que mete o dedinho, vasculhando com a unha (tem gente que deixa a unha do dedinho crescer só para fazer isso!), e captura um bolo de catota. Fica a seguir embolando nos dedos até ela ressecar completamente. E por fim, joga-a fora com um peteleco.

Quem faz isso, além de não ter recebido uma boa educação, tem uma mente limitada. Não consegue ver que tudo está interligado. Vou tentar explicar.

Aquela catota antes era um muco fluído, que se juntando a células descamadas mortas das narinas, lá se fixou e em contato com o ar frio e seco, solidificou. Ela fica lá, lembrando que o indivíduo tem que se hidratar, se aquecer, lavar o nariz... Mas não! O nojento enfia uns dedinhos sujos e arranca a catota.

Essa é a gênese. Passemos às consequências.

Jogando fora, ela cairá e nunca mais será encontrada. Alguém já encontrou uma catota perdida? Ela se cola à poeira, fragmenta-se e se reúne com o universo infinito. Algumas marcadas pelo destino perduram, rolando de pé em pé. Até um dia, quem sabe, grudar-se à barriga de uma barata morta, estourada. E ser então varrida entre cerdas, migalhas de bolacha e fios de cabelo. Qual o fim disso tudo?

Contos enrustidos da loucuraWhere stories live. Discover now