A dança de Mabel

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Abigail nasceu numa família pobre. Seu pai plantava de tudo, colhia o que dava, e vendia pelo que pagavam. O terreno que herdou dos seus pais era tudo que tinha, sem contar com as galinhas, uma vaca, um boi e três ovelhas. Um infinito latifúndio de antigos duques que foi sendo diminuído pela inépcia de cada geração que substituía, até que duas tarefas de massapê sobrou a seu pai. E Abigail nasceu na pobreza. Um bebê de dois quilos, faminto, de apetite insaciável. Cresceu devorando tudo, comendo sem parar, durante todo o dia. Vivia doente, de todo tipo de doença que pudesse existir. Era um estorvo para os médicos e uma verdadeira fonte de renda para as rezadeiras, que lhe faziam os mais pitorescos lambedores. O prejuízo da família. Mas o problema não era somente esse; antes fosse! Aquele pedaço de gente, couro e osso, cabeça e cambitos, um sibito baleado, tinha um gênio digno deste livro de contos. Disso que quero tratar, afinal. Ela conseguia colocar a casa em pé de guerra! Torrava a paciência de todos até três casas ao redor, e no final ainda achavam ela uma gracinha e tinham dó. Só os pais e os irmãos sabiam a peste que era. A menina manipulava todos eles, colocando um contra o outro, testando, provando, minando as forças psíquicas de cada parente debaixo do teto que vivia. Os vizinhos só escutavam os berros, portas batendo, panelas tinindo e tapas estalando. E ainda falavam:

– Coitada da menina Abigail, criada numa família dessa.

O pai ficava tão irritado com as manipulações de Abigail que descontava sua agressividade em cima de todos os outros filhos e até respingava um pouco na mulher. A mãe enxotava o marido para fora de casa, e assim, deu para beber. A mulher se tornou uma grosseira vulgar, os irmãos uns vagabundos e suas irmãs, vadias. A menina cresceu como se acumulasse toda a malícia de seus ancestrais dentro de si. Era um anjo dormindo. O demônio devia entrar pelos olhos quando as pálpebras se afastavam.

Todos seus parentes concordavam numa só coisa: a menina tinha que ir embora. Mas não havia tia ou avó que tivesse a coragem de pegar para criar. Uma festinha de família, um casamento, um batizado, era o suficiente para os mais sagazes perceberem logo o perigo que Abigail era. Acho que cada um já pensou em dar veneno de rato para a menina, mas a consciência lhes pesava e logo agitavam a cabeça para afastar a tentação.

O jeito era casar ela. Fizeram de tudo para a menina virar moça cedo e lhe arrumar um marido. Na verdade, um dono que a carregasse. Todos os dias davam-lhe carne de bode velho cozido no óleo de palma, porca leiteira assada na banha, camarão com caranguejo no leite de côco, amendoim, castanha, e todo tipo de comida reimosa que tinham conhecimento. Deixavam ela andar com roupas apertadas e curtas pelo sol, com brincos e batom, cabelo sempre esticado num rabo de cavalo. À noite dormia num quarto de telha grossa e baixa, de janelas cerradas, num colchão de palha velho, coberta com abafa-peido, para fazer suar, como se quisessem chocar seus ovários para maturar seu útero! Como já tinha dez anos e ainda não lhe tinham vindo os costumes, até fizeram ela aprender a fumar. Enfim, a menina menstruou aos onze e casou no mês seguinte.

  O sogro deu uma tarefa ao genro e vendeu a outra. O pai com a mãe foram para outro estado, dois irmãos para o Rio, outros dois para São Paulo. As irmãs também casaram mas fiquei sem saber delas. Abigail e o marido viveram em paz. Todos os vizinhos se mudaram e a casa mais próxima era a cento e vinte quilômetros. Tiveram oito filhos e a terra deu como nunca. Ficaram ricos, construíram casas e compraram gado. Abigail se vestiu de sedas e joias. Seu marido enfim colocou uma chapa de dentes de marfim. Seus filhos tinham do bom e do melhor. Então tiveram o nono filho. E nasceu menina. Mabel. Quatro quilos. Quase que não nasce, enganchada pelo queixo que ficou por três dias. Ninguém sabe se foi por causa desse sofrimento excruciante de Abigail, ou se foi pelo número agourento do nove, ou se matematicamente este último fruto reprodutivo rompera o equilíbrio de uma dinâmica limítrofe.

O gado adoeceu, o leite azedou, as vagens murcharam, as espigas bicharam, os poços secaram. Mas não foi do dia pra noite. Isso aconteceu a cada dia de vida da Mabel. Mabel foi uma fofinha recém nascida de luxo, uma rechonchuda bebê afortunada, uma gordinha criança abastada, uma roliça menina comum e uma moça gorda pobre. E Abigail enfim era gorda e tinha reprimido com todas as sinapses corticais as lembranças de sua pobreza. Afinal, endividados, venderam quase tudo. Pagaram as dívidas e aplicaram o resto do dinheiro no banco. O banco quebrou. Seu marido se matou. Passaram fome. Abigail levou uma balança da suíte luxuosa para a casa alugada. Quando um dia viu que perdera um quilo, um frio se espalhou a partir da barriga. Teve taquicardia, esfregou as mãos, enxugou uma lâmina de suor da testa, foi à geladeira e a abriu. Só tinha água nas garrafas. Abriu os armários: só frascos e caixas ocas. Tinha que comer. Nenhum supermercado lhe vendia mais. Seus cartões de crédito já estavam todos bloqueados. Ninguém mais lhe emprestava. Seria humilhante ir na vizinha pedir comida. Mas foi:

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⏰ Last updated: Nov 10, 2016 ⏰

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Contos enrustidos da loucuraWhere stories live. Discover now