Capítulo 8 - Mea maxima culpa

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"Não só somos responsáveis pelo que fazemos, mas também pelo que não fazemos." (Molière)

    Ian mantinha as costas apoiadas na cama inclinada para frente, enquanto tinha os olhos voltados para a loira que invadia o seu quarto no meio da noite, e que mal parecia saber o que estava fazendo ali dentro. Ele estava bem acordado. Havia acordado há mais de vinte minutos, e o bem-estar repentino fez o arquiteto escolher a solidão acolhedora do que as enfermeiras quase desesperadas demais. Não tinha muita dor; sabia que seu braço esquerdo estava engessado, além de sentir uma coceira súbita dentro do gesso e que estava o deixando maluco. A cabeça estava enfaixada e o rosto um pouco dolorido. Ele conseguia sentir as escoriações por dentro do gesso e das faixas, e também em seu rosto, provocadas pelo atrito contra o chão na hora do baque.

  E não entendia o porquê de estar tão tranquilo.

  Sabia que era de sua natureza a tranquilidade excessiva, mas queria sentir o desespero por pelo menos uma vez na sua vida. Queria ter sentido seu coração disparar ao acordar – por não saber onde estava –, mas tudo foi tão irritantemente normal que não tinha graça fingir o medo. Seu coração batia normalmente, a dor era suportável e nada intimidadora, e o silêncio no seu quarto apenas contribuía para mantê-lo no seu mesmo ritmo... inerte.

  Não se lembrava de muita coisa a não ser das buzinas ensurdecedoras e do barulho de seu corpo se chocando contra a lataria do carro vermelho. Lembrava-se também de momentos antes; o vulto pequeno e dourado que correra na sua frente para alcançar algo – que aconteceria de ser uma criança –, a necessidade crescente de correr atrás daquele minúsculo pontinho localizado no meio da intersecção entre as avenidas, e que havia sido percebido só depois que a loira entrara no campo de visão de Ian.  Os gritos do seu melhor amigo ecoando pelas estruturas de Chicago antes do arquiteto ser atingido e perder os sentidos de uma vez.

  Edgard, Ian pensou ao tentar se lembrar da cena quase apagada de sua memória. Como deveria estar o fiel amigo de Ian após o acontecido? Será que conseguia dormir? Era infame pensar que Eddie não havia providenciado a Ian os melhores cuidados, pois este sabia que o melhor amigo havia tomado tal atitude.

  Queria ver o advogado tanto quanto queria ver sua noiva, não sabia nem como se explicar para os dois quando aquilo acontecesse de fato. A primeira coisa que Ian fez ao acordar foi revirar suas íris verdes escuras pelo quarto à procura de Elle, que infelizmente já havia partido. Precisava saber como a noiva havia lidado com a notícia tão inesperada do seu acidente, e se esta ficara do seu lado durante algum momento em que estivera desacordado. Ou se a mulher houvera feito um escândalo no meio do hospital, algo típico de alguém como Elle, que não sabia se controlar nos momentos de tensão absoluta, e que envolviam Ian.

  Mas o homem espantou os pensamentos sobre Elle para longe uma vez que ouviu a porta do quarto abrindo e fechando rapidamente, como se o vento houvesse feito tal ação. Não conseguiu se assustar, mas surpreendeu-se ao ver os mesmos cabelos dourados que vira na hora do acidente.

  A menina se encontrava em posição desajeitada e totalmente encostada na porta, com os olhos e o rosto voltados para o chão. Os cabelos dourados caíam pela face, enquanto seu corpo parecia tremer involuntariamente; a mão direita estava enfaixada e apertava a maçaneta redonda com tanta força que os dedos finos e pálidos chegavam a ficar brancos por conta do sangue estocado ao segurar a porta pela bola de metal. Ela vestia um moletom preto, seus joelhos estavam dobrados – como se fossem ceder ao peso da garota a qualquer momento, levando-a para o chão –, e mesmo com a pouca luminosidade do quarto, Ian podia compreender suas feições, sem mesmo Daisy levantar o rosto para ele poder encará-la.

  Foi só então quando ela o olhou nos olhos que Ian sorriu sem querer. Eles eram verdes e estranhos, pequenos e naturalmente lacrimejantes, como se a menina fosse desabar no choro a qualquer instante. As feições da loira eram impressionantemente quadradas, e suas bochechas pareciam tão macias quanto os travesseiros em que Ian repousava a sua nuca dolorida pela má posição em que se encontrava.

Lovely Daisy - Inesperado.حيث تعيش القصص. اكتشف الآن