Vinte e dois.

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Eu não sou de falar por aqui, mas quero falar hoje: OBRIGADO A TODO MUNDO QUE ESTÁ ACOMPANHANDO A OBRA. VALEU. Tchau. :D

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Caía uma chuva torrencial, martelando as ruas e os telhados da cidade em uma tarde escura de terça-feira. Havia alguém esmurrando nossa porta da frente.

- Espere aí! - gritei.

Eu estava comendo torradas na sala. Abri a porta e lá estava uma mulher baixinha, completamente encharcada.

- Ally? - perguntei.

Ela me olhou. Deixei cair a torrada. A essa altura, Vero já estava atrás de mim.

- O que aconteceu? - perguntou.

O rosto de Ally estava coberto de tristeza. Filetes de chuva escorriam pelas suas faces enquanto ela se levantava devagar. Fixou os olhos na janela da nossa cozinha e disse, com um soluço entrecortando a voz:

- O Miffy. - Quase se desfez em pedaços de novo. - Ele está morto. No quintal.

Vero e eu nos entreolhamos.

Saímos correndo pelos fundos e começamos a escalar a cerca de qualquer jeito, enquanto a porta batia às nossas costas. No meio do caminho, eu vi. Havia uma bolota de lanugem empapada e imóvel caída na grama.

Não, pensei, ao aterrissar do outro lado. A incredulidade impediu meus passos, deixando meu corpo pesado e meu coração disparado.

Vero também alcançou o chão. Seus pés bateram na grama encharcada e, onde terminavam minhas pegadas, as dela começaram.

Ajoelhei-me sob a chuva torrencial.

O cachorro estava morto.

Toquei-o.

O cachorro estava morto.

Virei-me para Vero, que se ajoelhara a meu lado.

O cachorro estava morto.

Passamos um tempo sentadas ali, em completo silêncio, enquanto a chuva caía feito agulhas em nossos corpos ensopados. A pelagem castanha e fofa do Miffy, o lulu-dapomerânia que era um pé no saco, estava amassada e úmida por causa da chuva, mas continuava macia. Vero e eu o afagamos. Brotaram até umas lágrimas perdidas dos meus olhos quando me lembrei de todas as vezes que o leváramos para passear à noite, com fumaça a sair dos nossos pulmões e com riso na voz. Ouvi a gente reclamando dele, fazendo troça, mas, no fundo, a gente se importava com ele. Até o amava, pensei.

O rosto da Vero estava arrasado.

- Coitado do merdinha - disse ela, com dificuldade para falar.

Eu queria dizer alguma coisa, mas fiquei completamente muda. Sempre soubera que esse dia ia chegar, mas não havia imaginado que seria assim. Não sob aquela chuva torrencial. Não um amontoado patético de pelo congelado. Não com uma depressão do tamanho do que senti naquele exato momento.

Vero o pegou e o carregou para o abrigo da varanda, na parte de trás da casa de Ally.

O cachorro estava morto.

Mesmo depois que a chuva parou, a dor dentro de mim não cedeu. Continuamos a fazer carinho nele. Vero chegou até a lhe pedir desculpas, provavelmente por todos os xingamentos que proferia quase sempre que o via. Ally chegou um pouco depois, mas principalmente a Vero e eu é que ficamos ali. Durante cerca de uma hora, permanecemos sentadas ao lado dele.

- Ele está ficando duro - assinalei, a certa altura.

- Eu sei - replicou Vero.

Eu estaria mentindo se não dissesse que um risinho de mofa cruzou nossos rostos. Foi a situação, acho. Estávamos com frio, encharcadas e famintas e, de certo modo, essa foi a derradeira vingança do Miffy contra nós - a culpa.

Lá estávamos, quase congeladas no quintal da vizinha, fazendo carinho em um cachorro que ficava mais duro a cada minuto, tudo porque o havíamos insultado várias e várias vezes e, depois, tivéramos a audácia de amá-lo.

- Bem, esqueça - acabou dizendo Vero. Fez um último carinho no Miffy e falou a verdade, com a voz trêmula. - Miffy, você sem dúvida nenhuma foi um indivíduo ridículo. Eu odiei você, amei você e usei um capuz na cabeça para ninguém me ver com você. Foi um prazer. - Fez um último carinho na cabeça do cachorro. - Agora, estou saindo - esclareceu. - Não estou disposta a pegar uma pneumonia só porque você teve a coragem de morrer embaixo do varal, no meio do que era praticamente um furacão. Por isso, adeus, e vamos torcer para que o próximo cachorro que a Ally e a esposa resolverem adotar seja mesmo um cachorro, e não um furão, um rato ou um roedor disfarçado. Adeus.

Saiu andando pelo quintal escuro, mas, quando subiu na cerca, virou-se e lançou um último olhar para o Miffy. Um último adeus. E então se foi.

Demorei mais um pouco por ali e, quando a esposa da Ally chegou do trabalho, ficou muito aflita com o que eu estava começando a chamar de "O Incidente Miffy".

- Vamos mandar cremá-lo. Temos que cremar esse cachorro - repetia sem parar. Ao que parece, o Miffy tinha sido presente da mãe dela, já falecida, uma mulher que insistia em que todos os cadáveres, inclusive o dela própria, tinham que ser cremados. - Temos que mandar cremar esse cachorro - prosseguiu, mas raras vezes chegou sequer a olhar para ele. Estranhamente, tive a sensação de que a Vero e eu éramos as pessoas que mais gostavam daquele cachorro.

Pouco depois, eu disse meu último adeus, passando a mão no corpo rígido e no pelo sedoso, ainda um pouco chocada com aquilo tudo.

Fui para casa e dei a notícia da cremação. Nem é preciso dizer que todos ficaram admirados, especialmente Vero. Ou talvez "admirada" não seja bem a palavra certa para designar a reação da minha irmã. "Estarrecida" seria mais próximo.

- Vão cremá-lo?!? - gritou. Não conseguia acreditar. - Você viu aquele cachorro?!? Viu como estava encharcado?! Vão ter que secá-lo primeiro, senão ele não vai nem mesmo queimar! A chama mal vai pegar! Vão ter que usar o secador de cabelo!

Não pude deixar de rir.

Acho que foi por causa do secador.

Fiquei imaginando Ally parada junto do pobre cachorrinho, com o secador ligado em alta velocidade, e a mulher chamando da porta dos fundos:

- Ele já secou, querida? Já podemos jogá-lo no fogo?

- Não, ainda não, querida! Vou precisar de mais uns dez minutos, acho. Não consigo secar a droga da cauda!

O Miffy tinha uma das caudas mais felpudas da história do mundo. Pode acreditar.

Mais tarde, na sala, Vero continuou a falar do assunto. Àquela altura, já conseguia rir, e discutimos quando seria o funeral. Obviamente, se ia haver uma cremação, tinha que haver um funeral.

Descobrimos no dia seguinte que haveria uma pequena cerimônia no sábado à tarde, às quatro horas. O cachorro seria cremado na sexta-feira.

Naturalmente, como encarregadas de levar o Miffy para passear, fomos convidadas para o funeral na casa vizinha. Mas não foi só isso. Ally também resolveu que queria espalhar as cinzas do Miffy no quintal que tinha sido seu domínio. Perguntou se gostaríamos de ser as pessoas a espalhá-las.

- Sabem como é, eram vocês que passavam mais tempo com ele.

- É mesmo? - indaguei.

- Bem, para ser sincera - Ally remexeu-se um pouco -, minha mulher não gostou muito da ideia, mas eu insisti. Eu disse: Não, aquelas garotas merecem, e está resolvido. - Ela riu e completou: - Minha mulher se referiu a vocês como as duas merdinhas da casa ao lado.

Vaca velha, pensei.

- Vaca velha - disse Vero, mas, por sorte, a Ally não ouviu.

A garota que eu quero (Camren | Intersexual)Donde viven las historias. Descúbrelo ahora